Duas péssimas adaptações cinematográficas: uma, de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson; outra, das façanhas do semidivino Hércules.
Que adaptações das obras antigas sejam feitas, nada a reprovar desde que respeitem elas a essência das obras adaptadas. É certo que tu, leitor amigo, sabes de adaptações absurdas de obras literárias, lendas, mitos, histórias do arco da velha às novas artes, o cinema, a revista em quadrinhos, o videogame - e à literatura também, e nesta era, a nossa, em que Branca de Neve não é branca e os Sete Anões não são anões, vê-se absurdidades sem fim, em especial saídas da cachola de gente ilustrada, antenada com a mentalidade que, dizem, é a moderna, que faz a cabeça do povo de hoje em dia (embora jamais expliquem porque o povo a rejeita terminantemente), gente que está a reescrever, e a, há quem acredite, melhorar, a aperfeiçoar as obras antigas.
Para o meu desgosto assisti, dia destes, um filme, de produção britânica, acredito - não verifiquei se o é, de fato -, que traz no título os dois nomes que estão no título de uma das duas obras mais famosas de Robert Louis Stevenson, The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (no Brasil, em algumas edições, simplesmente O Médico e o Monstro) - e a outra é A Ilha do Tesouro -, e uma das obras literárias mais emblemáticas do século XX, rival de três outras maravilhas, 1984, Admirável Mundo Novo, e A Metamorfose.
Para o meu desgosto, sim; e contrariedade. Frustrou-me as expectativas o filme. Esperei ver um bom filme, que traria do livro o espírito que o seu autor lhe deu. Mas, não! Alteraram a essência da obra. A essência! Na obra, a que a cabeça de Robert Louis Stevenson concebeu, é a dualidade humana, a da sua personalidade, o bem e o mal em eterno conflito em seu espírito, a essência. Os dois personagens centrais, o doutor e o monstro, seu alter-ego, são metáforas de duas metades da alma humana. Qualquer adaptação que se faça de tal obra tem de preservar este detalhe, que não é um detalhe de somenos importância, é o essencial. Mas... Quê! Decidiram, em uma versão em película de tão magistral obra, dar-lhe fim! Que asneira fizeram! No filme, vê quem tem o desgosto de assisti-lo, principalmente se quem o assiste não desconhece o livro, o doutor Jekyll tem um irmão gêmeo, o senhor Hyde. E aquela história da poção que converte o doutor em uma criatura irracional, assassina, animalesca?! Não existe. Aliás, existe, mas é uma invencionice do senhor Hyde, que a concebeu para explicar um mistério que envolve um suposto comportamento errático do seu irmão gêmeo. Perdi uma hora de minha curta vida a assistir à tal porcaria, e porcaria das bem porcas.
E outro filme ao qual assisti e que muito me frustrou foi um que traz, a assumir a figura do semideus grego Alcides, neto de Alceu, o Héracles, pelos romanos e pelos homens modernos chamado Hércules, um ator que há poucas décadas era um lutador, se assim se pode dizer, de luta livre, aquele esporte que simula lutas e cujos participantes jamais derrubam uma gota de sangue no ringue. Sim, ele, mesmo, leitor, ele, hoje um ator famosíssimo. No filme, que em seu título carrega o nome do mais famoso semideus grego, o Cérbero não é um cachorro de três cabeças: são três cachorros cada um deles de uma cabeça - mas, ludibriadas pela escuridão e por outros fenômenos, as pessoas acreditavam ser o trio de cachorros um monstro de três cabeças. E os centauros, pasme-se, leitor! não são seres híbridos, metade cavalo, metade humano: são, nada mais, nada menos, do que homens montados em cavalos, que, ao longe, sobre as colinas, as suas silhuetas contra o Sol, pareciam aos reles humanos criaturas híbridas humano-equinas. O que tem a dizer Quíron? Além destes detalhes, há outras asnices sem tamanho, e são tantas que me calo.
Filmes de fundo mitológico bons, que o filho de Zeus e Alcmena protagoniza, são os nos quais ele tem a estampa do Lou Ferrigno, que também assumiu a figura de um monstruoso ser verde.
Estou a me perguntar porque se rouba às histórias antigas a magia, o fantástico, o fabuloso, e aos fenômenos se dá interpretações psicológicas, ou outras quaisquer. Querem melhorá-las?! Têm horror ao que não compreendem as pessoas que as adulteram?! Odeiam os sabidos o que não lhes corresponde à visão-de-mundo?! São estúpidas, mesmo, e presunçosas, e incultas, e se têm na conta de intelectos supremos as gentes que fazem tal asnidade?! São elas os reis da cocada preta, a última bolacha do pacote. E têm o rei na barriga.
Ah! Esquecia-me: aproveito a oportunidade que a ocasião amigavelmente me oferece, e digo: de Os Assassinatos da Rua Morgue, do extraordinariamente escalafobético e estranhamente genial Edgar Allan Poe, um gringo bebum fora-de-série, eu vi uma versão em película que nada mais é do que uma porcaria das grandes - e é antiga tal porcaria, o que prova que gente besta faz porcaria desde que o mundo é mundo.
Estão a se remexer no túmulo, é líquido e certo, os antigos aedos, e Stevenson e Poe.
É sério, leitor, é sério: o que nas linhas acima eu disse que vi eu vi. Menino, eu vi.