Comentários irreverentes de um freudiano amador - parte I: "DRIVE MY CAR".
Como diria Freud, a história de cada um de nós NÃO começa com o nosso nascimento, mas pelo menos duas ou três gerações antes. É também o que nos dá a entender o filme "DRIVE MY CAR", do diretor japonês Ryusuke Hamaguchi , visto no último dia 13 (de agosto de 2023), no Clube de Cinema de Marília: de fato, somente após meia hora do início, é que aparecem os créditos, como se a trama estivesse nascendo ali, mas com um histórico a ser considerado. Quais são então os dados jogados pelos deuses para cada um dos personagens, e quem são eles?
Resposta: um casal, Yusuku e Oto, respectivamente, marido e esposa, e sua jovem filha , falecida de pneumonia com quatro anos de idade, algum tempo antes de "começar o filme"... Explicação racional para isso? Evidentemente nenhuma, a não ser possivelmente o desgaste conjugal que a partir daí se instala, culminando com a traição de Oto, e sua morte por acidente vascular cerebral logo depois. Aqui, o marido, que a encontra morta, não revela nenhuma emoção, mostrando-se indiferente à situação ou, no máximo, abismado com o inusitado acontecimento.
Podemos adivinhar os sentimentos que lhe passaram pelo coração, colocando-nos no lugar do personagem? Talvez um desejo oculto e (in)consciente de vingança pudesse ali estar presente? Ou então de conformismo, admitindo-se que aquela mulher já estava morta muito antes, quando do falecimento da filha ou da traição conjugal? E para o adultério: poderíamos, como faz Yusuku, entendê-lo como compensação pela ausência da filha? Difícil encontrar uma resposta a tudo isso, a não ser que empreendamos uma jornada interior, à alma do personagem, em busca dos seus sonhos e desejos.
É o que nos revela, depois da meia hora inicial do filme, a alegoria do carro, tendo o viúvo como passageiro. A cargo da direção teatral da "Tio Vânia", de Tchekhov, a ser representada em outra cidade, Yusuku inicia o seu percurso de autoconhecimento dentro do próprio automóvel, escutando sempre e ao mesmo tempo o áudio dos personagens da peça, sem se aperceber que o enredo dela e o de sua vida podem ser semelhantes.
De fato, também para o fracasso de Vânia, tentam-se encontrar explicações e um culpado, que acabam recaindo sobre o seu cunhado, Professor Aleksandr Serebriakov (viúvo da irmã de Vânia, e agora casado com Helena), que o teria explorado economicamente durante toda sua existência, juntamente com sua filha, Sônia, do seu primeiro casamento, administradores e trabalhadores de sua propriedade rural, enquanto o velho professor se dedicava à sua vida acadêmica em Moscou.
Como Tio Vânia, que lamenta o seu passado e se perde no presente, sem nenhuma perspectiva para o futuro, também o viúvo Yusuku se vê preso da aleatoriedade e das surpresas do destino. Em suas corridas dentro do seu carro, ele se encontra sob a influência dos diálogos de Tchekhov e do silêncio de sua motorista, a reservada Misaki, verdadeira representante de uma psicanalista, que tudo ouve e nada diz. É, aliás, preciso que o áudio seja repetido inúmeras vezes, como se Yusuku estivesse dizendo a si mesmo tais frases, para que ele se dê conta do que está se passando em sua mente.
No fim e ao cabo, por causa da morte de um dos atores, é o viúvo mesmo que faz o papel de Tio Vânia, identificando-se plenamente com o personagem e suas aspirações e desencantos. Há no entanto uma diferença entre os dois: enquanto o personagem russo coloca para si, juntamente com Sônia, sua sobrinha, o encontro da felicidade na morte, Yukusu reelabora a sua narrativa de vida, com a possibilidade de achar-se feliz - ou pelo menos - em paz, ainda neste mundo.
Nesta altura, ambos - Yusuku e Tio Vãnia - pelo menos já reconheceram que a vida é, sim, cheia de sofrimentos e - pior do que tudo - sem que possamos indicar-lhes uma razão. No caso de Vânia, a reelaboração de sua narrativa (que é sempre necessária para suportarmos a vida) está no céu; para Yusuku, entretanto, a redenção vem com sua motorista Misaki que, só ao final - psicanaliticamente - emite uma sugestão a ele: "que tal ver tudo o que aconteceu como vicissitudes da vida", às quais todos estamos sujeitos, incluindo a própria Misaki?
Sim, porque ela mesma teve uma mãe prostituta, a quem muito odiava. A redenção de ambos surfe quando os dois admitem que "mataram" os seus respectivos algozes (esposa e genitora), quando sabemos muito bem que não foi isso o que aconteceu. Na verdade, nesse momento eles acabam de confessar seus sentimentos ruins e maus, que todos temos, já que somos humanos, e até demasiadamente. Em vez de escondê-los, procurando outras explicações para o que estamos sentindo, o melhor para as nossas mentes é reconhecê-los e tratá-los como próprios, à luz de nossa consciência.
Somente a partir disso é que enterramos um ciclo e nascemos para um outro: não é à toa que, quase no final do filme, o carro passa por um túnel, com sucessivas imagens em "flash", que refletem um verdadeiro canal de parto, com um novo mundo pela frente, menos entusiasmante - por causa do conhecimento de que não somos perfeitos, e mais sofrido - porque sabemos que teremos que trabalhar o resto de nossas vidas, fisicamente, como Vânia e Sônia, e psicologicamente, como Yusuku e Misaki, ao reelaborarem as suas narrativas de existência.
Tal qual os antigos gregos, que tinham a vida relativamente simplificada ao atribuírem naturalmente aos deuses os seus males e alegrias, também Yusuko e Misaki podem se religar à natureza (especificamente à nossa, humana) para descobrirem, em si mesmos, as causas de seus sentimentos. Esta "religião", a do autoconhecimento, é a única que pode trazer algum conforto para os sofrimentos da vida, ressignificando-os e reelaborando-os, num trabalho para toda a existência.
"Coincidentemente", o filme termina com uma incursão final à natureza, no momento em que a motorista e seu patrão vão ao campo: o último, para poder "pensar" e a primeira para relembrar a casa onde a mãe morrera queimada. Em meio ao cenário de destruição da edificação, nada sobrou e nada se reconhece, a não ser uma pequena plantinha, nova e verdinha: é ela que representa a vida, recém-brotada para ambos, analisando e analisado (Yusuku e Misaki), com outras perspectivas e esperanças.
E assim termina a minha interpretação desse filme, sabendo que para muitos pontos não encontrei explicação. Entre eles, está o significado do papel de Takatsuki: seria ele uma personificação de Yusuku quando jovem? E a invenção das histórias por parte de Oto no instante de suas relações sexuais? Haveria uma ligação entre o ato de escrever com o prazer que isto proporciona? Como interpretar a passagem da enguia?
Sem dúvida, este é um filme que dá margem a muitos (des)entendimentos; por isso mesmo, vale a perna ser visto e revisto, tal é o impacto que nos provoca. Não deixando de considerar a perspectiva de ver a peça "Tio Vânia", com todas as expectativas que isso traz. Boa sessão a todos! Bom teatro! Clube de Cinema de Marília, 20 de agosto de 2023.