Continuar vivendo é o que importa, nos diz "Drive My Car"

"Drive My Car" (Japão, 2021) é o filme ganhador do Oscar de filme internacional de 2022, aclamado pelas críticas mundial e brasileira.

O cultuado diretor japonês Ryusuke Hamaguchi baseou o filme em um conto homônimo do escritor japonês Haruki Murakami.

Yusuke Kafuku (ator Hidetoshi Nishijima) é um diretor de teatro que, contratado por uma companhia para um festival de teatro, vai a Hiroshima para dirigir a peça "Tio Vânia", de Anton Tchekhov, na qual é especializado. Mas, para se deslocar entre o hotel e o teatro, precisa aceitar que uma motorista contratada pela companhia, Misaki Watari (atriz Tôko Miura), dirija seu próprio carro, um Saab 900 vermelho, para não sofrer algum contratempo no trânsito.

Da fria relação inicial entre os dois, emergirão terríveis histórias pessoais de culpa reprimida. Tal catarse só será possível graças à intermediação catalisadora da peça, que é ensaiada por Yusuke dentro do carro, com a ajuda das marcações que lhe dá uma fita cassete gravada pela sua falecida esposa.

O filme, portanto, é sobre a necessidade de trocarmos nossas experiências, de revelarmos nossas dores, para continuar vivendo.

Para quem pretende assistir ao filme, devido à referência importante à peça de Tchekhov, recomendo continuar a ler esta resenha no PS a seguir, onde faço um resumo de "Tio Vânia", para entender como esta peça se insere no contexto da própria história do filme, já que, ao longo deste, a peça será lembrada constantemente em vários de seus diálogos. Isso porque o filme pressupõe que o espectador já conheça a peça.

PS: RESUMO DA PEÇA "TIO VÂNIA"

Tio Vânia é um escritor de meia-idade, que se sente um fracassado por não ter escrito uma grande obra, e que vive com sua mãe Maria e sua sobrinha Sônia numa propriedade rural cujo dono é o professor Serebryacov, pai de Sônia, esta fruto do seu primeiro casamento com a irmã de Vânia. Serebryacov, portanto, é cunhado de Vânia, mas que casou-se novamente, agora com a bela Helena, que é bem mais jovem do que ele.

Quando a peça começa, Serebryacov e Helena estão visitando a propriedade, que pretendem vender devido a problemas financeiros que os oprimem. Na propriedade está também o médico Dr. Astrov, que ama e se declara a Helena, que fica confusa. Mas Astrov sente-se também um fracassado, porque não consegue deter o desmatamento que assola as florestas que ele tanto ama.

Por sua vez, Serebryacov sofre com as frequentes crises de dores nas pernas provocadas pela gota, durante as quais é consolado por Sônia e Helena.

Helena confessa a Sônia ser uma pessoa infeliz por se considerar uma mulher secundária que não realizou seus sonhos. Sônia não é bonita e diz a Helena que não tem coragem de se declarar a Astrov, de quem gosta secretamente.

Durante o transcorrer da peça, Vânia também reclama constantemente da sua vida infeliz, que nunca conseguiu fazer algo importante que o levasse à categoria de um Schopenhauer ou um Dostoiévski, e que agora é tarde para isso. Sua mãe Maria não suporta essas reclamações do filho.

Vânia assedia Helena, mas esta o repudia, humilhando-o. Por esse e outros infortúnios relacionados a Serebryacov, Vânia o detesta. Como pela intenção do professor de vender a propriedade rural que ele, a mãe e Sônia sempre cuidaram e mantiveram em perfeita ordem. Vânia detesta também o médico Astrov, porque Helena mostra certa queda por ele.

Vânia, num ímpeto de revolta com tudo, tenta matar o professor com um revólver, mas falha até nisso. Contudo, após acalmar-se, Serebryacov se reconcilia com Vânia, desiste da venda da propriedade e vai embora com Helena para a cidade.

Toda a ira de Vânia contra a sua própria vida era consequência da presença do cunhado e da rejeição de Helena a ele. Houvera uma ruptura na ação atabalhoada de Vânia contra o cunhado. Quando Serebryacov vai embora com Helena, as coisas voltam ao lugar de sempre, cada qual envolto em suas dores e frustrações rotineiras. Mas agora Vânia, livre do casal, sente-se menos amargurado, diante da exortação que Sônia lhe faz sobre a necessidade de nunca entregarmos os pontos, que devemos continuar vivendo, porque talvez, após a morte, seremos recompensados por nossos sofrimentos em vida.

A peça tem pontos em comum com o romance "A Morte de Ivan Ilitch", de Liev Tolstói, e o filme "Viver", de Akira Kurosawa (que o baseou no romance de Tolstói), pois as três obras tratam do mal-estar advindo das frustrações de vidas vazias que se perderam no tempo.

É por isso que a peça é importante para Yusuke e Misaki, por se identificarem com os sentimentos de fracasso e redenção de tio Vânia. Porque, custe o que custar uma vida sofrida, devemos sempre continuar vivendo, como pudermos, conforme nos retrata o momento mais bonito do filme, quando os dois se abraçam para se consolarem mutuamente com as suas culpas por tragédias pessoais.

Assim, o filme (ele próprio uma ficção) faz uma homenagem à ficção, para nos mostrar como ela pode nos salvar das angústias interiores com que a realidade pode nos atormentar.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 11/08/2023
Reeditado em 26/08/2023
Código do texto: T7858699
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