“Tokio Sonata” vai além no conceito usual de “schadenfreude”
(Alívio do próprio sofrimento diante do sofrimento alheio maior)
“Schadenfreude” é um termo alemão que significa “prazer com a desgraça alheia”.
O psicólogo canadense Steven Pinker, no seu livro “Como Funciona a Mente”, ilustra esse significado com um provérbio iídiche: “Quando é que um corcunda exulta? Quando vê uma pessoa com uma corcova maior que a dele”.
Esse tipo de prazer é tratado também pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860):
"Também não se deve negar que, nesse aspecto, e a partir desse ponto de vista do egoísmo, que é forma do querer-viver, a visão ou descrição dos sofrimentos alheios nos proporciona satisfação e prazer, como Lucrécio bela e francamente o expressa no início do segundo livro de 'De rerum natura':
'Suave, mari magno, turbantibus aequora ventis,
E terra magnum alterius spectare laborem:
Non, quia vexare quemquam est jucunda voluptas;
Sed, quibus ipse malis careas, quia cernere suave est.
(Quando o mar está bravio e os ventos açoitam as ondas,
É agradável assistir em terra aos esforços dos marinheiros:
Não que nos agrade assistir aos tormentos dos outros,
Mas é um prazer sabermo-nos livres de um mal.)'
Todavia, veremos mais adiante que esse tipo de alegria, obtida pela intermediação do conhecimento do próprio bem-estar, encontra-se bastante próxima da fonte positiva e real da maldade."
(SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação. Tomo 1. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2005, I377, p. 412) ( * )
Certas obras ficcionais, em romances, filmes ou peças, em que personagens se debatem em situações dramáticas, têm esse objetivo de causar no leitor ou espectador (como as tragédias gregas e as de Shakespeare) esse prazer de estar acima ou fora das situações trágicas que lê ou a que assiste. O leitor ou espectador pode estar numa situação pessoal difícil, mas pode ficar aliviado ao ver situações piores do que as dele. Não se pode falar bem em prazer, mas em um alívio para os próprios males na percepção de males piores nos outros.
É assim que o filme japonês “Tokio Sonata” (disclaimer: há, em,seguida, spoilers no texto, necessários para suportar uma reflexão do autor, motivo pelo qual recomendo ao cinéfilo mais aficionado assistir ao filme antes de continuar a leitura), do diretor Kiyoshi Kurosawa (nenhum parentesco com seu homônimo mais famoso, o também diretor Akira Kurosawa), aborda a questão, ao mostrar, numa cena genial, que o “schadenfreude” parece ter uma abrangência semântica bem maior do que somente o significado “prazer com a desgraça alheia”. O próprio filme tem essa característica de mostrar uma tragédia para provocar no espectador o “schadenfreude”, ao retratar a situação dramática de uma família moderna no Japão, cuja tradição cultural enfatiza ainda hoje a importância do papel do pai como o provedor material e guardião moral da família, o qual de repente se vê às voltas com o desemprego. O pai, o protagonista da história, que, por contingências operacionais da empresa em que trabalha (devido à fusão com outra empresa), perde um cargo de diretor e não consegue encontrar outro emprego de mesmo status, teme tanto perder a autoridade culturalmente tão prezada sobre a família que chefia, que esconde o fato dela, mantendo a farsa mesmo após aceitar, envergonhado, um cargo de faxineiro num shopping.
Essa farsa imoral (uma mentira), emergida de um medo tão grande da perda da honra ou respeitabilidade na família, é ressaltada de forma eloquente na cena do jantar na casa de um amigo do protagonista. Esse amigo, de outra empresa, igualmente está desempregado e esconde também o fato da família, formada por ele, a esposa e uma menina, encenando com o protagonista, no jantar, um diálogo fictício sobre os empregos de ambos, como se ainda estivessem empregados. A cena do jantar tem um desfecho impactante, quase aterrorizante (um cacoete do diretor Kiyoshi Kurosawa, que especializou-se antes em filmes de terror), quando a menina da família faz ao protagonista a revelação surpreendente de que sabe tudo o que está ocorrendo com o pai, e , com isso, emerge a ideia de que todo o jantar fora uma farsa terrível onde todos, o pai, a mãe e a filha também simulavam um teatro para o protagonista.
Mas a cena genial de que falo, que coloca o “schadenfreude” numa dimensão semântica mais ampla, é a da dona de casa, esposa do protagonista, conversando com o ladrão que a sequestrara, após uma tentativa de assalto fracassada em sua casa. Nessa altura, ela já está abalada emocionalmente com o drama familiar que emerge do difícil relacionamento dos dois filhos com o pai autocrático. Este, intimamente humilhado pela sua situação, se insurge contra o filho mais velho, quando este revela que quer se alistar no exército americano, ato talvez vergonhoso e inaceitável para um japonês médio que ainda conserve atavicamente o antigo “espírito nipônico” de guerreiro invencível, calcado numa tradição arcaica e anacrônica, e que foi obrigado a aceitar a humilhante derrota para os americanos, hoje aliados, na Segunda Guerra Mundial. E desconta sua frustração pessoal também contra o filho mais novo, que, escondido da família e com o dinheiro da merenda escolar, toma aulas de piano. É provável que, mesmo no Japão de hoje, para esse indivíduo conservador, um “artista” na família seja motivo de desonra. A cena da surra do pai no garoto, quando descobre suas inclinações, mostra a impotência da mãe em defender o filho da injustiça que este sofre diante da fúria cega do pai descontrolado. É nessa ruína familiar pela qual se vê acossada, que a dona de casa é assaltada pelo ladrão e levada por ele como refém. Para ela a situação familiar é tão triste que o assalto quase não a afeta e segue o ladrão sem reagir, como se estivesse anestesiada. O abalo final que a faz desmoronar de vez é quando vai, autorizada pelo ladrão, fazer as necessidades num shopping e encontra ali o marido na roupa de faxineiro.
Porém, a dona de casa, ao contrapor sua própria tragédia familiar à do ladrão, que, obrigado a roubar para sobreviver, está numa situação trágica pior do que a sua, sente–se aliviada diante do ladrão, pois este, ao expor um sofrimento pior do que o dela, tem a propriedade de amenizar e, até, anular seu próprio sofrimento, o que faz com que ele seja visto com simpatia e como um salvador dela própria, desse seu sofrimento. É por causa do “schadenfreude”, um sentimento de alívio que o ladrão lhe proporciona, ao se apresentar a ela como um ser trágico pior do que ela, que ela, por estranho que possa parecer aos olhos do senso comum, é levada a ter um sentimento de gratidão pelo ladrão, por amenizar seu próprio sofrimento atroz.
Assim, em “Tokio Sonata”, “schadenfreude” adquire uma dimensão semântica ampliada, que extrapola o sentido dado por Pinker como um termo significando “prazer com a desgraça alheia”, refletindo algo menos execrável do que acha Schopenhauer em seu ponto de vista, com o significado mais suave de um “alívio para o próprio sofrimento”, a ponto de que o pivô do sentimento seja tido como um salvador do agente que porta o “schadenfreude”.
E a cena final, emocionante, mostra que, se a arte, representada aqui por este filme, é capaz de clarear, com histórias simples, mas ilustrativas, conceitos mentais difíceis explorados pelos filósofos, como sugere Pinker em seu livro, é também a arte, representada na cena pela música, que, ao fim e ao cabo, pode salvar de seus infortúnios pessoais o homem comum que, abraçado a crenças equivocadas, paradoxalmente a desdenhe.
( * ) Trecho transcrito da dissertação de mestrado em filosofia do autor.
Filme: Sonata de Tóquio
País e ano: Japão, 2008
Diretor: Kiyoshi Kurosawa
Elenco: Teruyuki Kagawa, Kyoko Koizumi