"O Cidadão Ilustre" é uma homenagem elegante à literatura e à ficção
O filme "O Cidadão Ilustre" (Argentina, 2016), de Mariano Cohn e Gastón Duprat, é tão inteligente e traz questões tão impactantes na seara da arte, especialmente para quem gosta desta, que diferentes interpretações podem-se extrair dele. Basta ler as diversas resenhas elogiosas (encontráveis na internet) que se fizeram sobre ele quando foi lançado.
A que vou fazer aqui é minha interpretação pessoal, baseada no que senti quando assisti a ele pela primeira vez no Cine Belas Artes, em São Paulo (SP). Ao término da sessão, fiquei particularmente emocionado pelo desfecho inusitado da história, que se liga ao fascínio que a ficção exerce sobre nós. Mas o fiquei mais, talvez, por ter sido a literatura, que considero aqui ter sido homenageada, o instrumento crucial que definiu meus interesses na vida e o rumo que esta tomou. Para exemplificar essa influência, sinto que o aprendizado tácito sobre os valores morais veio da leitura prazerosa inicial das histórias infantis clássicas de Monteiro Lobato, do famoso conto "Bola de Sebo", de Guy de Maupassant, dos romances clássicos "Os Miseráveis", de Vitor Hugo, "As Vinhas da Ira", de John Steinbeck e "Servidão Humana", de Somerset Maugham. A partir dessas obras iniciais que me marcaram, a leitura se consolidou como comportamento prazeroso com outros autores clássicos e contemporâneos.
Destarte, foi a literatura que me fez gostar de ler e, daí, de escrever. Em seguida, o prazer de ler e escrever me levou a um curso de filosofia, culminando num mestrado que, por sua vez, me obrigou a escrever uma dissertação, uma obra de fôlego séria que exigiu uma dedicação extraordinária à leitura e à pesquisa, que atualmente está sendo revisada para uma publicação, na qual estou atualmente empenhado como um objetivo vital para mim.
E é justamente essa questão sobre a motivação para realizarmos uma obra que é colocada logo no início do filme pela personagem da história, um escritor laureado. Se chegamos a concluir a maior obra que podemos realizar, o que nos resta fazer?
O protagonista, o fictício escritor argentino Daniel Mantovani (ator Oscar Martinez), vive confortavelmente na Espanha e acaba de ganhar o maior prêmio que um escritor pode almejar, o Nobel de Literatura. No seu discurso de agradecimento pelo prêmio, ele o questiona. Ao recebê-lo, diz que chegara ao pináculo da sua atividade criativa, a uma "canonização terminal" que o limitava para sempre. A partir do prêmio, que prazer teria agora em escrever, se o objetivo final fora alcançado?
O escritor russo Fiódor Dostoiévski, no livro "Memórias do Subsolo", através da boca do narrador, em um trecho (1), faz uma reflexão instigante sobre o real sentido de um autor realizar a obra da sua vida (como o construtor de um edifício) à qual dedica seus melhores esforços: ele estaria na sua conclusão, a que teme chegar pela possibilidade de ela não referendar suas certezas, ou estaria nos momentos prazerosos que sentiu enquanto a realizava? Nesse último caso, ele deveria procrastinar ao máximo o término da obra, já que essa atividade, realizar a obra da sua vida, era a única coisa em que via sentido para esta?
Transportando a ideia para o caso de Mantovani, o que poderia substituir a atividade prazerosa de escrever o livro da sua vida quando, enfim, o terminou?
Para Mantovani, o que lhe sobrava agora era receber (e, se dependesse dele, rechaçar todos) os convites para homenagens enfadonhas e discursos anódinos a convertidos interesseiros. Entretanto, em meio a tais reflexões existenciais, ele resolve, instigado pela vaidade, aceitar um convite das autoridades da sua cidade natal, na Argentina, para uma série de homenagens.
Não chego a dar spoiler ao revelar aqui que as idiossincrasias daquela cidade e de seus habitantes haviam sido a matéria-prima que havia alimentado os seus romances e causado o sucesso destes, que, afinal, o levara ao prêmio Nobel.
O que vai acontecer com Mantovani na cidade e o desfecho surpreendente da história deixo ao leitor para descobrir assistindo ao filme.
Mas o que mais chama a atenção no fim do filme e o que desencadeia a emoção em qualquer espectador que aprecie a ficção em qualquer das modalidades artísticas em que esta pode se manifestar (literatura, cinema, teatro e televisão) - e isso foi um mérito do filme e não da história em si - é a guinada súbita que se dá na mente do próprio espectador, quando, no desfecho, o limite entre realidade e ficção se nubla por conta de uma inesperada e surpreendente revelação que Mantovani, à guisa de dar uma entrevista, faz a esse espectador, através do que os cinéfilos chamam a quarta parede.
Filme: "O Cidadão Ilustre"
País e ano: Argentina, 2016
Direção: Mariano Cohn e Gastón Duprat
Elenco: Oscar Martínez, Dady Brieva
(1) Dostoiévski, Fiódor. "Memórias do Subsolo". Tradução de Murilo Oliveira de Castro Coelho. Barueri (SP): Camelot Editora, 2024. (p. 44)