Maid (EUA, 2021)
Qual foi o dia mais feliz de sua vida, real ou imaginado? Maid lhe propõe essa reflexão.
Trata-se de uma minissérie cuja teia central é a violência doméstica (VD), mas sem olhos roxos ou outros hematomas visíveis. Não é costume nosso entender que a VD é invisível para pessoas próximas e, muitas vezes, a própria vítima não se dá conta do abuso que está sofrendo; ou até perceba, mas acredita que a culpa é dela. Afinal, essa é um dos principais artifícios do agressor: ir tirando da mulher gotas de vida, diariamente, com reclamações, controle e ofensas, até que não reste mais brilho algum nela...
É claro que existem vários tipos de relações de VD, inclusive de mulher contra homem, mas não é o caso aqui: a protagonista é uma jovem mãe de 25 anos que se percebe incapaz de conviver com a VD; não sabe aonde ir, a quem pedir ajuda, o que fazer. Sua única certeza é de que ela e sua bebê de menos de 3 anos precisam sair dali. Quantas – com mais ou menos idade, com filho ou não – não passa por isso agora?
Alex (Margaret Qualley) não tem o estereótipo que se poderia esperar para esse tema. Mas podemos nos identificar perfeitamente com ela e seu impulso em busca de vida. Nessa busca, ela encontra instituições de apoio e até mãos bondosas estendidas, porém, que, a um mau passo, lhe fecham as portas na cara. Nessa busca, os apuros e obstáculos são muito mais recorrentes – e reais – que momentos de alegria, o que faz pensar que não há dias felizes.
Mesmo diante disso, não vemos Alex chorar. O que vemos são seus gigantes olhos azuis arregalados diante de obstáculos que lhe surgem de todos os lados. Sim, porque a sensação é que estamos com ela em um túnel, olhando para uma meta, que está próxima e é bem simples de atingir, mas tropeçamos em coisas que não deveriam estar ali, coisas caem em nossas cabeças, coisas arranham nossos braços, nos ferem... Coisas que não vimos nem imaginávamos que existiam. Qual de nós não esteve neste túnel, vendo nosso desejo iluminado bem ali na frente, e nossos companheiros de viagem, em vez de nos ajudar a desviar dos obstáculos, são eles mais um: se enlaçam em nossos pés, nos impedindo não só de ir para frente, mas nos levando para baixo... Sim, o famoso fundo do poço também está na história.
É engraçado perceber que os pais de Alex, cada um a seu modo, adoram Sean (o companheiro agressor): a mãe o paparica, o pai o “entende” e defende. E o próprio Sean se faz presente em momentos bem difíceis para Alex. Se estivéssemos em seu corpo, provavelmente sentiríamos que o mundo está contra nós, que somos nós as culpadas.
E arregalamos os olhos com Alex, chocadas não só com os obstáculos, mas com o comportamento humano: em um instante, aquela pessoa nos diz que nos ama, nos apoiando em um momento difícil e, nos seguintes, está ferindo nossa alma. Mas não é nada fácil ter essa consciência – diante de um abuso, a primeira coisa que nos passa pela cabeça é que estamos fazendo algo errado e que aquele que nos ofende e maltrata tem um motivo para isso: um dia ruim, está cansado, sofreu na infância, bebeu demais “mas está fazendo de tudo para largar a bebida”...
Parece proposital não aprofundar nenhum personagem – todos são planos, mas, ainda assim todos mostram suas duas faces, de bem e de mal. De tal forma que, tal qual a realidade, sabemos que agressores foram vítimas, muitas vezes de pessoas muito próximas. E que filhos muitas vezes, ainda que inconscientemente, repetem a história dos pais.
As duas faces de Alex, de certa forma, são um paradoxo: passividade (diante dos agressores) e ação (por sua sobrevivência e da filha). Sua passividade parece decorrer de não saber o que fazer – ela ainda está se descobrindo e descobrindo o mundo –, mas também porque certas atitudes humanas são tão absurdamente inesperadas (e, repito, reais) que só lhe resta a inanição...
E é interessante ver isso, pois se Alex tivesse o comportamento contrário (como muitas de nós) e agisse diante das agressões, seria agressiva, isso é, estaria perpetuando a agressão; e se fosse passiva diante da necessidade de sair daquela situação, perpetuaria uma condição de “vítima”, e quem permanece nessa condição não tem saída.
Por isso, essa série é muito importante, especialmente para aquelas que passam por isso, pois o primeiro passo é se dar conta de que está passando por isso. O segundo passo é agir, sair dessa situação, ir em busca.
Até o momento em que, tempos depois, encontramos nosso agressor, ele agora já sem aquele poder que lhe dávamos. E ele diz, levemente admirado: “É impressão minha ou você está brilhando?”.
E nós, com o coração cheio de compaixão, confessamos: “Não, não é impressão.”.