Os Lundgren em Paulista: História de opressão e exploração dos trabalhadores

Os moradores mais antigos do município do Paulista, na Região Metropolitana do Recife (RMR), costumam lembrar o autoritarismo como foi mantida a cidade “nos tempos dos Lundgren”. Nas fábricas pertencentes à família, a gestão também era “linha dura” e os trabalhadores sofriam todo tipo de exploração.

O filme "Tecido Memória" (2008; Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ), dos antropólogos José Sérgio Leite Lopes e Maria Rosilene Barbosa Alvim, mostra um pouco dessa realidade, que muitos negam e outros tantos desconhecem. O filme levou quase dois anos no processo de montagem. Foi lançado em 2008; em 2010 ganhou o Prêmio Pierre Verger, do Festival da Associação Brasileira de Antropologia.

O documentário, com duração de 71,5 minutos, foi produzido a partir das pesquisas antropológicas e historiográficas realizadas por Leite Lopes e Rosilene Alvim, desde 1976, durante o mestrado, e que deram origem às publicações dos livros "Cultura e identidade operária: aspectos da cultura da classe trabalhadora" (LOPES, 1988) e "A sedução da cidade: os operários-camponeses e a fábrica dos Lundgren" (ALVIM, 1986).

A finalidade do filme é reconstituir o cotidiano dos trabalhadores das indústrias têxteis de Pernambuco e registrar a importância das lutas dos operários na busca por melhores condições de trabalho, moradia e garantia de direitos sociais. Mas, a observação mais atenta, levará o expectador à conclusão de que as arbitrariedades praticadas pelos Lundgren chamam muito mais atenção. Eles não eram tão bons como está gravado no imaginário de grande parte dos paulistenses. Os Lundgren eram, simplesmente, representantes do capital e exploradores dos trabalhadores.

O filme

A história da atividade têxtil em Pernambuco é montada a partir da memória de 11 ex-operários das antigas Companhia de Tecidos Paulista (CTP), detentora das fábricas Aurora e Arthur e uma vila operária na área central do Paulista; Companhia Industrial Pirapama, no município da Escada; fábrica da Macaxeira, do grupo Othon Bezerra de Melo, no Recife; e Cotonifício Moreno, na cidade do Moreno. Os entrevistados resgatam as práticas de dominação exercidas pelo capital até a tomada de consciência dos operários, com a criação do sindicato e as lutas por direitos.

Os relatos são de Antônio Norberto de Lima, Édson Marcelino do Santos, Genésia Severina de Lima, Inácio Felizardo, Isabel Maria dos Santos, Ivanildo Soares, João Francisco da Silva, Luiz Barros da Silva, Luiz Benedito da Silva (Bené), Marcelo Anastácio (Castanha) e Rosália Ferreira Alves. A maioria deles, ex-operários da antiga CTP, que era a maior indústria têxtil de Pernambuco e chegou a empregar entre 15 mil e 20 mil trabalhadores nas fábricas Arthur e Aurora, entre os anos de 1940 e 1950.

A partir da sequência dos depoimentos, nota-se que o documentário foi estruturado em três etapas: na primeira, estão os relatos sobre o recrutamento dos trabalhadores do campo para a atividade fabril, as promessas e a chegada dos operários e suas famílias a Paulista, nos primeiros anos de 1900, para trabalhar na CTP. Na segunda, estão os relatos dos ex-operários sobre o cotidiano nas fábricas, a convivência entre eles, as atividades sociais e de lazer. Na terceira etapa, os registros da organização dos operários para fundação do sindicato e as lutas por direitos trabalhistas e sociais e as perseguições sofridas. Além dos relatos dos operários, muitas fotos e recortes de jornais da época.

Verdades diferentes

“Tecido Memória” é o lado B da história contada ao longo dos tempos pelos representantes do capital e do poder político local, que sempre ressaltaram o empreendedorismo, a visão progressista e espírito desenvolvimentista da família Lundgren. Mas os relatos dos trabalhadores trazem à tona uma outra verdade: de desrespeito aos direitos humanos, exploração da classe operária e descumprimento da legislação trabalhista.

Exploração, trabalho insalubre, falta de assistência à saúde, assédio moral, trabalho infantil, pressão psicológica, trabalhadores clandestinos, ameaças, violências e intimidação praticadas por capangas e capatazes, carga horária excessiva, péssimas condições de trabalho e baixos salários. Essas eram algumas irregularidades praticadas na CTP, segundo os ex-operários. A companhia foi fundada em 1902, pelo empresário sueco, naturalizado brasileiro, Herman Theodor Lundgren. Após a sua morte, em fevereiro de 1907, as fábricas passaram a ser comandadas pelos seus filhos, o “coronel” Frederico Lundgren e o “comendador” Arthur Lundgren.

A versão do empresariado é a de que a CTP “era um empreendimento modelo” (...) onde “todos contavam com ótima infraestrutura urbana; a água era limpa, os moradores tinham acesso à educação e à assistência médica universal” (PERNAMBUCANAS). Mas a lembrança dos ex-operários é oposta: a de um grupo empresarial que explorava o trabalho infantil (“Empregava a partir dos 10 anos” - João Francisco. “Menino de sete, oito anos, era contínuo”), sonegava direitos trabalhistas (“Não pagava salário. Pagava quanto queria. Se não quisesse, mandava embora” – Bené) e exercia o domínio sobre a classe operária de forma violenta (“...Descobriram a casa. Aí tinham nove filhos. Depois levou o caminhão, tirou todas as telhas de cima da casa e deixou a casa descoberta, porque ele - o trabalhador - fazia parte do sindicato” – Rosália Ferreira).

O domínio dos Lundgren ia além das tecelagens. Eles eram donos da maior parte das terras do município, ocupadas por engenhos, e exerciam poder e influência sobre a política, a polícia e a Igreja local. O grupo também era detentor das Casas Pernambucanas, rede de lojas espalhadas principalmente no Nordeste para a revenda dos tecidos produzidos nas fábricas da CTP e da Companhia de Tecidos Rio Tinto (CTRT), instalada no município de mesmo nome, no vizinho Estado da Paraíba.

As lutas

Diante das más condições de trabalho e inúmeras irregularidades praticadas pela CTP, a partir de 1930 os trabalhadores dessa e de outras indústrias têxteis da RMR começaram a formar consciência de classe e partiram para o confronto com o patronato, através da constituição do sindicato, denúncias na Justiça do Trabalho e a realização de greves para garantir direitos nunca respeitados, como o registro em Carteira de Trabalho, carga horária de oito horas, repouso semanal obrigatório e o pagamento de horas extras. O “comendador” Arthur Lundgren, que assumiu a direção das indústrias em 1946, depois da morte do seu irmão, o “coronel” Frederico Lundgren, tentava das mais diversas formas desestabilizar, abafar e suprimir as lutas dos trabalhadores.

A luta e resistência dos trabalhadores têxteis duraram até o início da década de 1980, quando ajudaram a fundar a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Mas o grande marco dos trabalhadores têxteis foi uma greve que durou 21 dias, realizada em 1963, quando até a casa-grande dos Lundgren ficou sem água e sem energia elétrica. Eles lembram que, a partir de então, o “comendador” perdeu o controle e domínio sobre a classe operária. “...O coronel foi embora, não estava mais mandando aqui”, relembra Rosália Ferreira. “Ele disse: ‘Paulista não está mais entregue a mim’ e foi para o Recife; e nessa ida não voltou mais”, completa Bené.

Incoerência

Observa-se que, apesar das narrativas das lutas pelos direitos sociais, os trabalhadores não expressam sentimentos de mágoa, apesar dos registros de sofrimento e da opressão praticada pelos Lundgren no interior das fábricas e em toda área de domínio da CTP.

Numa espécie de inocência e de benevolência patronal, os ex-trabalhadores consideram 'positivas' muitas irregularidades praticadas pelo empregador e elogiam as concessões, o que não deixa de ser uma incoerência. "Foi melhor do que morrer de fome lá (no campo). Foi melhor vir para Paulista, trabalhar o tempo todo, do que passar fome", afirma Isabel Maria dos Santos. "Ela (a tecelagem) não era muito exigente, com esse negócio de problema de saúde, de documentos. Se você tivesse um registrozinho, pronto; estava trabalhando", conta Antônio Norberto de Lima.

Conclusão

A partir do documentário de Leite Lopes e Rosilene Alvin é possível desconstruir a história dos “benfeitores” de Paulista, uma história que era apenas contada pela elite empresarial, política e religiosa da cidade - bem diferente dessa mostrada pelos trabalhadores em “Tecido Memória”. O município, que adquiriu a fama de grande polo têxtil de Pernambuco, o fez a partir da exploração, dominação e desrespeito aos direitos dos trabalhadores.

Os Lundgren montaram em Paulista o seu feudo, um sistema de fábrica com vila operária, que recrutava os trabalhadores do campo para a CTP. O objetivo era exercer a dominação e o controle dos operários e manter a sua vida pessoal sob vigilância. Além das casas, muitas habitadas por mais de três famílias, os Lundgren cediam pequenas parcelas de terras para o cultivo da lavoura de subsistência; oferecia atividades recreativas e de lazer, com a promoção de campeonatos de futebol, brigas de galo, cinema e festas dançantes no clube municipal. Tudo isso tinha um objetivo estratégico: manter os operários na cidade, sem contato com o mundo exterior.

Mas a associação sindical e a participação na Juventude Operária Cristã (JOC) e nos núcleos de base da Igreja foram capazes de conscientizar e despertar os operários para a luta de classe e a construção da cidadania. Em Paulista, o capital perdeu. Mas os trabalhadores também perderam com o fechamento das fábricas. Hoje, só tem as chaminés e as lembranças.

*CASAS PERNAMBUCANAS. História da Familia - https://ri.pernambucanas.com.br/sobre-a-pernambucanas/historia-da-familia/

ALEXANDRE ACIOLI
Enviado por ALEXANDRE ACIOLI em 09/09/2021
Reeditado em 12/06/2023
Código do texto: T7338404
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