“'AQUARIUS' SERÁ A NOSTALGIA DO SEU FUTURO!”

Te recordas, caro(a) leitor(a), de recintos marcantes –tais como a casa de um parente querido, a sua própria casa, a sua primeira escolinha ou aquela pracinha do bairro onde os amigos reuniam-se para brincar- que você gostava muito de ir e permanecer durante algumas horas de seu dia? Garanto que esses lugares lhe proporcionaram fortes emoções, não é mesmo? Te recordas, agora, de quando você ou seu conhecido precisou se mudar de casa? Ou quando sua antiga escola ou o ponto de encontro de seus amigos de infância foi demolido para dar espaço à outra construção? Algumas pessoas, por esbanjarem dinheiro ou por não serem materialistas, podem nem se importar com isso. Inúmeras outras, no entanto, enxergam, nessa destruição, um apagamento simbólico e muito doloroso de suas boas lembranças junto a determinados locais queridos. Nesse sentido, o perspicaz filme “Aquarius”, dirigido por Kleber Mendonça Filho, ressignifica esse nostálgico sentimento de posse de memórias e eleva-o a uma proporção ainda mais contundente e impactante.

Na trama, a veterana atriz Sônia Braga incorpora, de forma magistral, a jornalista e escritora aposentada Clara, a qual tem o propósito de defender o antigo edifício em que sempre morou, lutando implacavelmente contra uma poderosa e influente imobiliária pernambucana. A protagonista demonstra muita resiliência e maturidade para confrontar as investidas sorrateiras da empresa e a exaustiva especulação imobiliária dos empresários. Sem perder a elegância, Clara é incisiva e categórica ao recusar as ofertas tentadoras da empresa e relatar as suas reais intenções, o que deixa os negociadores embasbacados com tamanha sinceridade. Não à toa, a intérprete dessa destemida nordestina recebeu, em 2016, a honraria de melhor atriz no Prêmio Ibero-Americano de Cinema Fênix, prêmio que considera produções da América Latina, Espanha e Portugal.

Essa empresa, por sua vez, planeja demolir a antiga construção de três andares na beira da praia de Recife e erguer um prédio enorme e pomposo. As recorrentes propostas de compra do apartamento de Clara são feitas pelo velho dono da construtora, Geraldo Bonfim, e seu sobrinho abastado, o mesquinho empresário Diego. Não intimidados pela determinação da mulher e menosprezando seu poder e inteligência, os dois homens de negócios tramam artimanhas excêntricas para tirar o sossego da moradora e obrigá-la a sair de seu aconchegante lar. Os artifícios que eles utilizam vão desde dissimuladas reuniões religiosas nos apartamentos vazios até festas barulhentas e bacanais voluptuosos nos mesmo lugares, além de outros recursos sujos e fétidos –literalmente. É nessa colisão de interesses, portanto, que o Edifício Aquarius adquire um status de quase personagem, pois ele é a questão motivadora de todos os conflitos e age indiretamente sob a mente dos humanos, influenciando a tomada de decisões que movem a história.

Além de encarar constantes conflitos com a empresa, Clara tem desentendimentos com outras pessoas de seu círculo social. Muitas delas exibem, mesmo que inconscientemente, a mesma ganância que é demonstrada pela Construtora Bonfim. Ana Paula, sua filha ambiciosa, por exemplo, tem uma vergonha recriminada por sua mãe morar naquele prédio e vive apresentando, a ela, as exorbitantes propostas de compra do apartamento. Ainda dentro de sua própria família, o insensível irmão Antonio debocha da intensa obstinação de sua irmã em não mudar-se de habitação. Como se já não bastasse, Clara é perturbada por raivosos ex-moradores do prédio, os quais esperam ansiosos que ela saia de lá para eles poderem ganhar a indenização que lhes fora prometida.

Entretanto, para equilibrar a balança, Clara dispõe de algumas amizades que são fundamentais durante o desenrolar dos conflitos do filme e, principalmente, na conclusão da trama. Ladjane, que é a empregada doméstica de da senhorita, é uma pessoa muito mais íntima do que os próprios filhos da escritora, os quais aparecem de vez em quando para visitá-la e contar as novidades. Aliás, dentro da família de Clara, as pessoas mais próximas são o seu querido sobrinho, a nova namorada dele e uma cunhada festeira, pois são os únicos que passeiam com ela por Recife e parecem entender as paixões da aposentada. Além desses, a jornalista mantém contato com o salva-vidas da praia em frente ao seu prédio e com a sua amiga advogada, os quais são destemidos coadjuvantes que enfrentam, ao lado da protagonista, a ameaça final desse embate entre poderosas mentes recifenses –a de Clara e a da Construtora.

Por isso tudo, Clara considera o Edifício Aquarius como uma perfeita marca de resistência contra a ganância humana e contra o irrefreável anseio de apagar a História em nome do lucro. É salutar, portanto, citar que esse imóvel não demonstra seu valor somente por suas paredes, andares, janelas e teto, ou seja, a arquitetura; ele ostenta a sua grandiosidade por meio das reminiscências que locais e objetos específicos evocam na mente daqueles que o habitaram, sobretudo na de Clara. Ademais, esse sentimento é expandido significativamente uma vez que ele já pertencera a antigas gerações, como a tia Lúcia, que era a proprietária original da residência. Por isso, Clara, orgulhosa das conquistas profissionais e pessoais de sua tia e igualmente honrada por suas próprias desventuras naquele edifício, renuncia uma mudança abrupta de apartamento, pois está contente com a sua vida atual e disposta a construir novas histórias no mesmo local em que sempre viveu e que conta toda a sua trajetória de forma congruente.

Falando em congruência, torna-se válido comentar a bela coesão que o filme apresenta. Embora os cento e quarenta e seis minutos possam parecer uma eternidade para um espectador mais apressado, toda e qualquer cena tem a sua particular relevância na história como um todo. Além de estabelecer uma narrativa baseada em causas e consequências, que são bem interligadas, o roteiro do filme não mede esforços para fazer uma profunda análise psicológica da personagem principal, revelando desejos, motivações, medos, incertezas e rancores. Sônia Braga consegue expressar várias facetas de sua personagem, sem cair numa figura caricatural de senhora ranzinza. Ela consegue interpretar uma avó amorosa, uma amiga parceira de baile, uma mulher madura e libidinosa e uma senhora decidida em seus princípios, concatenando cada traço de sua identidade em sua personalidade eclética por natureza.

Além disso, o longa-metragem aplica, bem marcadamente, a famosa estrutura cinematográfica de dividir a história em três atos. Isso acontece por meio de frames rápidos que nomeiam o início das três partes do filme. Com isso, é oportuno deixar o futuro espectador descobrir sozinho os nomes dessas partes, pois a interpretação do significado dessas nomenclaturas faz parte da apreciação da obra e instiga o instinto investigativo e interpretativo do público. Mas não é uma compreensão muito complicada à la “Donnie Darko”; é um recurso estilístico –bem utilizado, aliás- que dá um charme a mais ao projeto de Mendonça Filho. Aliás, dentre outras características, foi por causa desse esmero requintado na contação da história que ele foi laureado como o melhor diretor brasileiro de 2016, no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, maior premiação do cinema nacional.

Também é oportuno afirmar que essas três partes lançam mão da fotografia dos espaços como um eficiente recurso narrativo. Na primeira dessas partes, por exemplo, o filme expõe alguns momentos felizes, de quando Clara era jovem, nos anos 1980. Esses flashbacks introdutórios exibem imagens antigas com tons constantes de amarelo, que nos remetem a uma nostálgica e saudosa fotografia amarelada pelo tempo, a qual emana saudades e sensações em relação a um passado longínquo e bem vivido. Por outro lado, quando o filme retorna ao presente –nas duas últimas partes, mormente-, a coloração dos locais adquire duas características principais bem distintas.

A primeira é uma tonalidade acinzentada e escura, resultante do crescimento urbano desenfreado e presente na cidade invadida por inúmero e gigantes prédios, o que confere ao cenário uma monotonia entediante e denuncia o marasmo visual de construções tidas como ultramodernas. A segunda tonalidade, por seu turno, é apresentada por meio da expressividade das cores do interior do apartamento de Clara. Os tons brancos e amarelos-queimados dos móveis, das paredes e do piso provocam sensações de calma e acolhimento. O verde das plantas e o colorido das capas de livros, dos discos de vinil e dos CDs enaltecem esses objetos e trazem, respectiva e conjuntamente, vida e cultura ao ambiente. Dessa forma, essa intercalação denota um constante contraste entre o moderno, visto como maçante, e o antigo, tido como vívido, o que subverte positivamente arquétipos reconhecidos na vida urbana.

Ademais, a obra cinematográfica consegue ilustrar grandes dilemas da sociedade moderna: Até que ponto devemos conservar e cuidar de edificações antigas, de discos de vinil e de álbuns de fotografias? E até que ponto devemos adquirir imóveis modernos, mergulhar no mundo do streaming musical e nos entregar às redes sociais? Em outras palavras, como podemos harmonizar e conciliar os dois lados da equação, sabendo que ambos têm sua devida importância? O filme não demonstra aversão ao futuro e aos aparatos tecnológicos; ele os respeita e reconhece a relevância social deles. Porém, o foco aqui é desvelar um descarado desprezo pelo passado. Extrapolando o perigo de demolição do prédio, a obra também aborda esse assunto em cenas mais cotidianas, mas igualmente comoventes: a exumação de um cadáver do cemitério, a destruição de papéis antigos em um depósito e a tentativa de esquecer a identidade de uma antiga faxineira afrodescendente. Assim, o filme expõe como esse processo desvaloriza e afronta as subjetividades construídas arduamente desde o passado.

Além de trazer à tona esses impasses, o filme consegue expor e explorar as vantagens de ambos os lados desse paradigma. Ele mostra como um antigo móvel doméstico se personifica devido a sua peculiar relevância dentro do apartamento de Clara, assim como de que forma uma rede social aproxima pessoas necessárias às relações interpessoais dela. Outrossim, a obra expõe, em uma das cenas mais emocionantes, como a dedicatória de um livro antigo pode realinhar o amor familiar, do mesmo jeito que um celular pode apresentar, à família, uma pessoa nova e querida, mas que está distante. Diante disso, é perceptível que Clara não é totalmente encarcerada ao seu passado. Ela também sabe curtir as coisas boas que as tecnologias lhe oferece, não restringindo sua vivência a lembranças remotas.

Clara sintetiza seu posicionamento, bem como o tom narrativo do filme, em uma excelente frase: “Quando você gosta é vintage, quando você não gosta é velho”. Essa convicção desvela a intensa seletividade dos personagens em relação aos objetos que eles desejam conservar e o que é pretendido descartar, seletividade essa que despreza as experiências pessoais de outrem e que culmina em um impiedoso processo de aniquilação de recordações. Ainda acerca disso, nota-se uma suposta necessidade de pôr nomes em inglês para objetos hodiernos -ou que querem ser descolados e modernos, como a moda vintage-, ao invés de mantê-los em português. Inclusive, a obra cinematográfica faz uma analogia muito interessante acerca desse fato: a imobiliária queria dar o nome Atlantic Plaza Residence ao novo prédio a ser construído, ou seja, um termo em inglês -língua moderna em ascensão no mundo. Em contrapartida, o nome atual da construção, que é Aquarius, vem do latim –língua vinda da Roma Antiga e atualmente considerada morta. Esse momento do filme é muito emblemático e representativo, pois confronta memórias do pretérito com perspectivas do futuro, assim como o restante do longa-metragem.

Engana-se crassamente quem pensar que essa relutância da protagonista não passa de uma intensa teimosia. O filme conduz o púbico por algumas situações importantes da vida dela, as quais são intrinsecamente conectadas a sua longa vivência naquele relativamente simples apartamento e que justificam o motivo de tamanha insistência em preservar a História daquele lugar tão estimado. O filme é sagaz ao mostrar que Clara sofreu alguns traumas enquanto morava naquele local; e o filme é mais esperto ainda ao insinuar, nas entrelinhas, que ela também conseguiu superar essas adversidades por meio do longo tempo que viveu nas dependências do edifício. Por exemplo, é notório que o lugar foi berço de recuperação de uma doença e também foi lar de grandes amores, os quais, infelizmente, mostraram-se passageiros no decorrer dos anos.

Outro ponto forte do filme é a eficiência em evidenciar as virtudes que diferenciam a protagonista de uma típica mulher medíocre de classe média alta. Isso gera, inclusive, aproximação com o grande público, o qual pode se ver espelhado na tela, pois, muito provavelmente, pode ter vivenciado acontecimentos semelhantes aos retratados. Dentre os possíveis momentos de identificação, pode-se destacar a forma que ela se diverte com a solitude e como consegue desfrutar de seus momentos sozinha dentro de casa, fato esse que pode recordar as restrições que a pandemia impôs ao mundo, em que muitas pessoas tiveram que se adaptar a viver isoladas e com pouco contato físico. Ademais, o reconhecimento pessoal mais óbvio que os espectadores podem ter é com o apego emocional a bens pessoais específicos, como livros, jogos, fotografias, objetos de decoração, quadros e construções como a casa de um parente querido, a escola que um indivíduo estudou ou aquela pracinha em que ele/ela brincava com seus colegas.

Por fim, acredito que um leitor mais impaciente pode estar se perguntando: “Mas após tantas intrigas e reflexões profundas, como será que esse filme vai acabar?”. Sendo assim, os últimos dez minutos do longa-metragem são fascinantes e conseguem tramar um ponto de virada absolutamente surpreendente e impressionante, o qual faz o público vibrar pelos personagens e acarreta reações que são impossíveis de não serem em prol da represália realizada. Se o desenvolvimento do filme foi lindamente focado no drama e na investigação psicológica de Clara e de seu edifício, o desfecho brinda o envolvimento dos espectadores por intermédio de uma sequência final extremamente criativa, empolgante e digna de uma obra tão meticulosa e inteligente. Permitindo-me pegar emprestado o conceito do álbum “Future Nostalgia”, da cantora Dua Lipa, e fundi-lo à temática contrastante entre o passado e o futuro do filme, posso afirmar que “Aquarius” também será uma nostalgia do futuro daqueles que se deleitarem com esse obra-prima no presente. Por esses e outros motivos, acesse o serviço de streaming da Netflix e embarque nessa profunda experiência por dentro dessa pérola do cinema nacional.