A função do bom cinema em “Segredos e Mentiras”
Uma das principais funções do cinema de ficção, como da literatura, é exprimir e despertar no espectador, por contágio, emoções. E quando estas se fundem numa catarse impressionante no clímax da história de um filme, que impacta o espectador a ponto de arrancar-lhe lágrimas, estamos diante do bom cinema. Mas não são as lágrimas de tristeza provocadas por filmes popularescos e sentimentalmente apelativos feitos claramente para esse propósito. São lágrimas que podem ser tanto pela beleza daquela catarse, na qual a solução de conflitos explosivos se dá pela notável capacidade do ser humano de, apesar de tudo, responder com bondade e amor aos reveses da vida, como também, talvez fundidas a aquelas, lágrimas por se estar diante de uma obra de arte contando uma ótima história, devido à competente direção e às ótimas interpretações dos atores.
Todo esse sentimento favorável foi despertado em mim pelo filme “Segredos e Mentiras” (Grã-Bretanha, 1996, de Mike Leigh), que não conhecia e acabei por assistir-lhe só agora, fortuitamente, na plataforma do Sesc Digital, que o disponibiliza gratuitamente. No computador, não no celular (que é um lugar impróprio para se assistir a filmes), digite “Sesc Digital” na barra de pesquisa do Google e clique no link do site. A seguir, digite “Segredos e Mentiras” na barra de pesquisa do site para chegar ao filme.
Aí está quando um filme é bom. Após 25 anos, desperta num espectador que nunca lhe assistira a mesma sensação prazerosa que experimentaram os que lhe assistiram na época em que esteve nos cinemas. Não por outra razão, nessa época a recepção unânime e amplamente favorável da crítica culminou em diversos prêmios pelo mundo, entre eles no Festival de Cinema de Cannes de 1996 (prêmios de melhor filme e melhor atriz, este para a incrível Brenda Blethyn) e no Globo de Ouro de 1996 (melhor atriz em filme-drama para a mesma).
Todos os atores, incluindo os coadjuvantes, estão ótimos e parece que devem isso ao diretor Mike Leigh, que, segundo pesquisa que fiz, não se cansou de realizar exaustivos ensaios de cada cena para conseguir o efeito que desejava. Mas não resta a menor dúvida de que a atuação da atriz Brenda Blethyn, como a frágil e carente Cynthia Rose Purley, foi fundamental para que a história parecesse tão verídica e a cena final da catarse se tornasse tão emocionante.
O filme trata de um tema já abordado em outros bons filmes, o da “lavagem da roupa suja em família”, explorado na sua forma de humor negro por “Parente é Serpente” (Itália, 1992, de Mario Monicelli) e na sua forma mais cáustica por “Festa de Família” (Dinamarca, 1998, de Thomas Vinterberg). Mas, ao contrário desses dois filmes hiperbólicos, que abusam dos excessos que a ficção permite, “Segredos e Mentiras” é mais comedido. Ele segue uma trilha mais em linha com a realidade cotidiana, apresentando personagens e situações perfeitamente possíveis em nossas próprias famílias. Por isso, nos fascina mais, porque nos vemos ali retratados.
Não vou falar muito sobre a história do filme para não deixar escapar spoilers que estraguem o prazer do espectador. Vou introduzir apenas alguns detalhes sobre as personagens para fisgar o leitor.
Cynthia, longe de ser a personagem forte ou heroica normalmente reservada a uma protagonista, é uma personagem simples e sofrida do povo, que podemos encontrar na rua. É uma mulher madura e algo amargurada pela sua condição social na baixa classe média britânica. Mora de aluguel em Londres, num prédio mal conservado onde os pais viveram, e trabalha como operária numa fábrica de embalagens, por um salário com o qual mal dá para pagar o aluguel, o que não lhe permite ser uma pessoa autoconfiante ou generosa. Precisa, por vezes, da ajuda financeira do irmão mais novo, o bondoso e bem sucedido fotógrafo Maurice Purley. Nessa precária condição, vive às turras com a única filha com a qual convive, Roxanne, fruto de um relacionamento passageiro do passado, que é, por sua vez, uma amarga gari da prefeitura, com um permanente semblante carregado como que para jogar na cara da mãe a culpa pela sua própria situação.
No inicio da história, em que as personagens são apresentadas, um diálogo duro entre as duas espelha esse relacionamento tóxico entre mãe e filha. Em determinado momento, em que Cynthia acusa Roxanne de ter sido a causa de todos os seus problemas, Roxanne devolve-lhe dizendo que não pedira para nascer, ao que Cynthia retruca prontamente falando que tampouco ela desejara o seu nascimento. Roxanne responde que bastava que ela não tivesse transado.
Cynthia não sabe, mas uma outra personagem, a de Hortense Cumberbatch, uma jovem negra e optometrista socialmente bem colocada, vai entrar em sua vida para provocar um tumulto emocional ainda maior em sua já frágil condição psicossocial. Sobre a história, vamos parar por aqui.
Arrisco dizer que o filme endossa uma tese notável e atemporal de Marcel Proust sobre o caráter das pessoas e que colocou numa passagem de um dos livros que formam o seu seminal romance “Em Busca do Tempo Perdido”, através da boca do narrador, que a exprime mais ou menos assim, nesta paráfrase resumida: “Encontro mais nobreza de caráter no meu motorista ou na minha cozinheira do que nos aristocratas com quem convivo, em quem, por definição, aquele atributo deveria ser uma obrigação, mas nos quais, pelo contrário, encontro falhas de caráter não existentes nos primeiros”.
Vejo, neste momento em que escrevo, os cinemas retornarem, aos poucos, depois de passarmos pelo pior da Covid-19, com os mesmos blockbusters norte-americanos para adolescentes e crianças. Num programa de televisão (“Linhas Cruzadas”, TV Cultura, às quintas-feiras, 22h00), disse mais ou menos o filósofo Luiz Felipe Pondé: “Se você é adulto e gosta de filmes de super-heróis, deve estar com algum problema”. Mas, em contrapartida, a pandemia trouxe essa consequência inesperadamente boa de plataformas digitais trazerem, gratuitamente, festivais de cinema e filmes clássicos e contemporâneos excelentes para serem assistidos em casa.
Dentre estes últimos, destaco “Segredos e Mentiras”. Alerto para que, se você é uma pessoa sensível e for assisti-lo, mantenha um lenço por perto.