Timbuktu, o filme
Timbuktu, o filme
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Rodado na Mauritânia, com argumento em torno da ocupação de uma cidade do Mali, “Timbuktu”, do diretor Abderrahme Sissako (nascido na Mauritânia, de ascendência malinesa), é um filme que aproxima fatos realmente ocorridos com fortíssima especulação em torno de conflitos religiosos e de deslocamento humano. É um drama, em todo sentido da expressão, humano e estético. Uma fotografia de tirar o fôlego descortina paisagem desconcertante. Impera uma teimosa beleza humana, que é inegável. A luta pela sobrevivência e a redenção passiva ao destino marca as personagens centrais. Tenho a impressão de ter ouvido algumas vezes a expressão “maktub”, creio que o referente árabe para “o que está escrito”, como forma de determinismo incontornável. Aceitam-se os fatos, indicativos de uma ordem contra a qual não se opõem argumentos.
Uma profusão de línguas (árabe, tuaregue, francês, inglês, e talvez tantas outras) indica abundância de culturas distintas que se encontram em região potencialmente imaginária no norte da África, ainda que, sabemos, trata-se do Mali, ainda que fotografado na Mauritânia. Nesse mundo exuberantemente seco (se possível esse contraste) modernidade e ancestralidade se acomodam. É um aviso distópico de que a utopia da globalização seria irreversível. Caminhonetas, motocicletas, camelos, disputam o reduzido espaço urbano. Tendas e casas permanecem em sua maior parte fechadas para o espectador curioso. Não se penetra na intimidade desse mundo. O espectador reconhece os limites de sua compreensão cultural.
Em “Timbuktu” há um tema de sociologia teológica que chama a atenção. No contexto de uma religião predominante, marcada pela utilização comum de uma língua e do compartilhamento de um texto sagrado, há perspectivas interpretativas opostas. A exemplo de todas as formas simbólicas e reais de autoritarismo, o centro da preocupação dos quem ocupantes que mandam parece ser a agenda de costumes. Bania-se o cigarro e a música, bem como o futebol. Em cena fortemente lírica os jogadores disputam uma partida com uma bola imaginária. Chegam a comemorar um gol, tão imaginário, que chega a ser real. O guerrilheiro (sic) que comandava a ocupação traia os preceitos que defendia, fumando escondido. Soldados faziam ronda pelas noites, e invadiam as casas nas quais se cantava (ainda em que forma de louvores). Os melômanos eram aprisionados e em seguida condenados a tantas chibatadas. Mulheres deveriam usar luvas. Homens deveriam levantar as barras das calças.
Em um francês trôpego ordens e recomendações eram dirigidas à população. O líder religioso tradicional, um competente teólogo, tem-se a impressão, questionava os ocupantes indagando onde estavam a clemência, o perdão e a piedade. Culturas se chocavam. Há outra cena cativante, na qual uma mulher é pedida em casamento, com negativa da mãe, porque o pretendente não seguia os rituais locais. Percebe-se uma obsessão com o adultério, tido como pecado mais impuro. A exemplo das metáforas poéticas de Dante na tradição ocidental, não há uma linha nítida que separaria o crime, no sentido secular da expressão, em relação ao pecado.
A narrativa é cortada e ao mesmo tempo concatenada por uma série de curtas narrativas aparentemente independentes. Um grupo discute futebol, falam sobre a copa do mundo, e afirmam que os franceses teriam vencidos a nós brasileiros, porque somos pobres e aceitamos um navio de arroz, como pagamento por nossa indolência no jogo contra a França.
No núcleo da bem estruturada narrativa um homicídio, processado e julgado de acordo com um código de justiça centrado em soluções reveladas. Pretende-se punir o homicida com a determinação de que indenize a viúva, de quem o homicida depende do perdão. O réu lembra-se da mulher e da filha. Tenta sensibilizar as autoridades, indagando quem tinha uma filha, a inocente Toya. Sua linha argumentativa convence o espectador, ainda que (penso) não tenho influído na decisão. Percebe-se o apego para com fórmulas de composição relativamente abertas, no contexto de um sistema jurídico de encantamento, e não de racionalidade, como apontou Max Weber em vários estudos sobre o assunto.
O diretor liga as cenas iniciais com as cenas finais, suscitando uma sensação de continuidade temporal que é tônica central do filme. Não há expectativas de desate feliz. Essa lógica – final feliz - não predomina em um ambiente cultural marcado pelo determinismo, em desfavor do livre-arbítrio, que é marca de nossa pretensa racionalidade. De novo, o assunto é weberiano. O diretor não deixa espaço para comparações. É realista, fixando uma contingência dura, e ao mesmo tempo cativante. Celebra-se a vida, todo o tempo, ainda que no meio de tanta violência, e ainda que por intermédio de ações mais circunspectas.
Tendas, areias, camelos, luas e cores provocam deliciosa sensação de exótico. O espectador esquece-se das lições de Edward Said, o intelectual palestino que argumentava que nossa concepção de exótico é mais um aspecto de nosso etnocentrismo preconceituoso. “Timbuktu” é um filme impactante, e nesse sentido as desgraças e desventuras humanas que o filme revela transformam o exótico em sofrimento. “Timbuktu” permite interpretações metafísicas relativas à salvação em um mundo inóspito, ao mesmo tempo em que sugere uma compreensão relativa a arranjos práticos, aos quais se condiciona a sobrevivência. São os dois olhares, que se confundem, como se trocassem mensagens codificadas.
Ao fundo, uma extraordinária trilha sonora concebida por Amine Bouhafa, jovem compositor tunisiano, cuja melodia transporta o espectador para um universo estranho, assustador, mas ao mesmo tempo desafiador e intrigante.