O Tempo em "Sonhos", de Akira Kurosawa
Que aspectos você destaca do filme Sonhos, de Akira Kurosawa, que relata a história de um viajante que chega a um lugarejo conhecido por "Povoado dos Moinhos", e como eles podem se relacionar com o nosso modo de viver na sociedade contemporânea?
Destaco diversos aspectos do filme, a começar pela fotografia, que mostra um rio, fluindo sem parar, como o Tempo. Dois braços de rio aparecem, um fluindo rápido, outro devagar, o que já indica diferenças de percepção quanto à passagem do Tempo. Também aparecem rodas de moinho, que imagens que reforçam a ideia de passagem, e agregam a ideia de tempo não-sagrado, mas sim voltado para o trabalho, a produção/produtividade e sobrevivência. Nesse sentido, o homem de 103 anos é mostrado consertando uma roda, o que evoca que a maneira dele de ver e agir é diferente, talvez superior, porque pode "consertar" a visão ou abordagem do tempo puramente profana, com sua visão de tempo sagrado. A ideia de conserto também remete aos rituais sagrados de civilizações que procuram consertar suas barcas como modo de estar contemporâneo aos deuses, estar na presença deles.
Destaco também que o viajante, se depara com um costume que, inicialmente, parece estranho, o de as pessoas colocarem flores em uma tumba, até sem saber o motivo. Mais adiante, é mostrado um funeral sendo celebrado, outro costume que ele considera estranho. Esse viajante representa nós, espectadores, que vivemos absortos na percepção do tempo profano. E ao longo das explicações do homem de 103 anos, o viajante (e o espectador) vão sendo convencidos de que esses rituais sacralizam a percepção transcendente do Tempo. As flores na tumba perpetuam a memória de uma vida, ritualizadamente, tem um sentido de repetição, de regresso regenerador ao Tempo de origem. A celebração do funeral também configura um ritual e, assim como a frase do homem "É bom estar vivo!", pontua a importância da fruição da vida, preferencialmente em harmonia com a natureza, nessa ideia de regresso ao tempo da harmonia sagrada com os deuses, no caso, a própria natureza. Nesses rituais, as pessoas reencontram periodicamente o tempo sagrado, aquele que "se apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, eterno presente mítico reintegrado periodicamente pela linguagem dos ritos". Fica assim a comparação de comportamentos existenciais e ritmos temporais, entre o tempo monótono do trabalho (a roda do moinho) e o tempo festivo e sagrado (os rituais de celebração finitude da vida).
Na aula de hoje, aprendemos que "o tempo sagrado é o tempo kairológico, o tempo que dá sentido ao nosso existir. Para demarcar o tempo sagrado, as tradições religiosas têm suas festas, celebrações, rituais que interrompem o tempo cronológico e apontam para outra forma de perceber o tempo, o tempo do mistério da vida." A ideia de tempo é difícil de definir, como bem mostram as crianças entrevistadas no video de Nicole Vedovatto. Para os adultos, pode ser a "oportunidade que a vida oferece" ou a "memória do que se fez na vida". Dos dois jeitos, é tempo kairológico, do sentido da vida, da memória que permanece.
Sobre a permanência, o físico Marcelo Gleiser relembra a característica humana de perceber a passagem do tempo e a impermanência da existência, e por isso a nossa tendência tentar "driblar" a finitude da vida. Geralmente se faz isso com criações (arte, criatividade), para existir fora do tempo, ampliar a própria permanência no mundo, transcender essa limitação biológica temporal. As formas de arte, como é exemplo o cinema atemporal de Kurosawa, são um exemplo concreto disso.