Negação, de Mick Jackson

Negação, de Mick Jackson

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

“Negação”, de Mick Jackson, pode ser visto no Brasil desde março de 2017. Está disponível na plataforma “Netflix”. Com roteiro de David Hare, Negação” revisita uma história real, que opôs uma professora e pesquisadora norte-americana a um inglês, que se definia como historiador de perfil revisionista. Questionava fatos históricos tidos como incontroversos. Ainda que fatos à saciedade provados (o holocausto) o excêntrico insistia que não havia provas conclusivas sobre o terror.

Trata-se de David Irving (protagonizado por Timoty Spall) que se dizia convencido de que o holocausto fora um embuste; isto é, opinava (sarcasticamente) que as narrativas dos campos de concentração seriam fictícias, resultado de um plano inventivo para fomentar indenizações, em favor de judeus supostamente atingidos pela fúria nazista. Assim pensava. Irving processou Debora Lipstadt, a pesquisadora norte-americana (protagonizada por Raquel Weisz), alegando danos morais e perdas e danos. Debora citou Irving em seu livro, como exemplo de manipulação da história com objetivos espúrios. A editora Penguin era ré, ao lado de Debora. Enfrentaram uma peregrinação judicial.

“Negação” explora com intensidade temas disputadíssimos, a exemplo do revisionismo histórico, da liberdade de expressão, da herança do holocausto, do trauma e da culpa alemã, seguindo até os limites da falsificação da história. “Negação” comprova-nos que a história pode ser um guarda-roupa no qual cabe qualquer fantasia. Talvez porque referenciados por fatos efetivamente ocorridos os pontos que Mick Jackson explora em seu filme fogem do tom melodramático e da historiografia melosa. Essa linha tomada pelo realizador do filme é favorecida pelo plano da defesa da professora, no sentido de não explorar a veracidade dos campos de concentração, o que legitimaria quem negue o massacre. Não queriam justificar Irving como um dissidente. Queriam simplesmente tirar-lhe qualquer crédito. E conseguiram. Difícil explicar aos diretamente atingidos que essa seria a melhor linha de atuação. E foi.

“Negação” também ensina direito comparado. Tem-se uma pedagógica abordagem do sistema judicial inglês, das opções entre o júri e o juiz singular, da questão do ônus da prova (que na Inglaterra é de quem se alega o fato), bem como do fracionamento da advocacia em dois profissionais, o solicitor e o barrister. Um deles prepara a estratégia, os documentos e trata diretamente com o cliente. O outro atua na Corte, litiga, argumenta. As cenas da disputa judicial, e os bastidores do escritório de defesa reproduzem uma atuação pautada nos resultados.

“Negação” é um filme propício para tempos difíceis. Ainda que todos tenhamos direitos de expressão, há limites entre o voluntarismo do achismo malicioso e o registro sério de fatos efetivamente ocorridos. Difícil negar que Elvis Presley está morto. Difícil acreditarmos que a lua é triangular ou que a Amazônia é irrelevante para a preservação da vida ou que o sol é uma ficção ou que o Mar Morto é composto por água doce ou que a revolução francesa não viu nenhuma cabeça guilhotinada. Quem duvida dessas premissas que estude o livro de Laure Murat, “O homem que se achava Napoleão, por uma história política da loucura”. Há uma fronteira que separa a sanidade da esquizofrenia dolosa. É o tema psicológico que anima “Negação”.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 29/04/2020
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