Pelas ruas de Paris, de Elizabeth Vogler
Pelas ruas de Paris, de Elizabeth Vogler
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Ao ensurdecedor ritmo de uma balada noturna Anna (Noémie Schmidt) e Greg (Grégoire Isvarine) se conhecem (ou se reveem). Percebem que tem muito em comum. Embalados por alguma substância sintética descobrem-se apaixonados. A partir desse encontro casual desdobra-se o inusitado “Pelas ruas de Paris”, de Elizabeth Vogler. A narrativa não faz concessão à linearidade temporal. As passagens transitam no tempo, avançando, retornando ao eixo original, avançando de novo, sem que se tenha uma compreensão nítida do que ocorre com o jovem casal.
Os diálogos repisam clichês. Greg é o ambicioso que pretende viver em Barcelona, onde um emprego o espera. Hostiliza Anna acusando-a de desinteressada para com algum avanço profissional. Anna é uma garçonete, com o que Greg não concorda, afirmando desdenhosamente que lhe falta ambição. O processo de desestabilização do casal se dá nesse contexto, que não chega a qualificar uma tensão que justifique que se acompanhe o dissenso. Discutem como adolescentes. Ele é um pirralho que se faz de marido provedor. Ela é uma jovem no direito absoluto e potestativo de levar a vida como quer. Ele é muito velho para a idade que parece ter. Ela é muito resolvida para a idade que também tem. Ela sabe o que quer. Ele quer que ela queira o que ele quer. Não há acerto.
O espectador passa a desacreditar da realidade e por algum momento pretende acompanhar a narrativa como uma sucessão de metáforas e de alegorias. Mas cansa. Tem-se a impressão de que diretora e roteirista persistem tentando uma saída para o dilema, que é um falso problema, que não preocupa quem tenha algo mais sério para com o que se preocupar.
Um acidente aéreo derruba um avião que seguia de Paris para Barcelona. É a compreensão do espectador para com esse acidente que define uma posição em face do universo cosmológico desse filme. Anna estava no avião?
São duas hipóteses. Anna teria perdido a viagem ou Anna não perdeu o avião e perdeu a vida no acidente. Se válida a primeira premissa, entende-se que Anna ao longo do filme repassa sua vida, avaliando a forma como vivia com Greg, que percebe como uma ameaça a seu pleno desenvolvimento como pessoa. Greg é um chato, um típico castrador que reclama de tudo, um puro sangue do desmancha-prazeres, na inconfundível imagem de Carlos Drummond de Andrade, em outro contexto, evidentemente. Greg reclama o tempo todo. E não parece oferecer nada além de algum suposto e indefinido conforto material. Vale a pena aguentar tanta chatice por um prato de lentilhas?
No entanto, se Anna de fato estava naquele avião que se acidentou, faz sentido uma passagem na qual ela compara a vida como manifestação de uma realidade virtual, que seria mais virtual do que apenas aparentemente real. Tem-se uma apropriação simplista da narrativa platônica do mundo das ideias sobrepondo-se ao mundo da experiência empírica. Nessa linha, necessário um compromisso entre a diretora e o espectador, porque somente uma aliança dessa magnitude salvaria o filme, afastando-o de da classificação como ficção científica, gênero no qual definitivamente não se acomoda.
Há uma pretensão de vanguardismo em “Pelas ruas de Paris”. O espectador é quem confirma (ou não) se a diretora realiza essa pretensão. Sobra-lhe, no entanto, boas intenções. As sequências tomadas em Paris, especialmente no desdobramento do atentado ao Charlie Hebdo valem pelo registro histórico. À ordem da arquitetura parisiense, e sua inegável elegância, “Pelas ruas de Paris” opõe uma desordem social que também é real. O desajuste dos personagens já não mais se acomoda na silhueta da cidade-luz, a contrário do que víamos nos filmes da nouvelle-vague, quando personagens desajustados ainda eram perfeitamente ajustados à vida parisiense. “Acossado”, de Godard, é um exemplo.
Emblemática dessa subversão histórica de valores é a rápida cena na qual um transeunte negro dá esmola a uma senhora branca, e supostamente francesa. O mundo está de cabeça para baixo, desafiando uma lógica simplista, inclusive nas “ruas de Paris”.