O Apartamento, de Ashgar Farhadi

O Apartamento, de Ashgar Farhadi

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Um casal de atores, Emad (Shahab Rosseini) e Rana (Taraneeh Alitoosti) protagoniza “A Morte do Caixeiro Viajante”, de Arthur Miller, peça que relata de modo duro e direto o fim do sonho norte-americano. É uma peça integrante do pessimismo do entre-guerras, ainda que escrita em 1949. Nessa peça, a esposa do caixeiro não derrama uma lágrima no enterro do marido, que havia se suicidado, quando descobriu que os valores que perseguiu na vida nada valiam: era um fracassado.

Ao longo de “O Apartamento”, do iraniano Ashgar Farhadi, cruzam-se elementos da narrativa com pontos da peça que o casal representa. Mas há um ingrediente que leva o espectador a um êxtase interpretativo. Muita tensão. Qual? Por quê?

Emad, além de ator, era professor, ao que consta de literatura. Lecionava para um grupo de rapazes. Não havia moças na sala, o que revela um sistema de ensino que não incluiu mulheres. Deve-se aqui levar em conta o intelectual palestino Edward Said que em “Orientalismo” advertia que devemos tomar cuidado com os estereótipos orientais. Nós inventamos um oriente cheio de clichês que muitas vezes não se ajustam com a vida real. O fato de não haver moças na sala de aula não significa que mulheres não recebem educação formal no Irã. O filme é de 2016.

Exemplifica-se também esse estereótipo logo na primeira sequência do filme. Habitantes de um edifício são obrigados a deixar imediatamente o prédio. O espectador preconceituoso de imediato imagina uma bomba ou um terremoto. A razão determinante para que deixem o prédio é outra: não é bomba e nem cataclisma. A razão é outra, melhor ou pior, depende do espectador.

Emad queixa-se da precariedade da cidade onde vivem. Afirma que a cidade deve ser implodida, destruída, e depois reconstruída. Devem deixar o apartamento que ocupavam. Um colega do grupo teatral ao qual pertenciam lhes oferece um apartamento para que ocupem provisoriamente. Quando Emad e Rana chegam com a mudança imediatamente descobrem que a moradora anterior deixara suas coisas no lugar. É aí que a tensão começa. Mas o diretor já tem o espectador cativo e a partir de então judia de quem vê o filme. Faz o que quer. É o diretor quem manda. O espectador é dominado pela narrativa, pelo jogo rápido das cenas, pelo olhar da câmera.

A câmera é o narrador. O diretor coloca a câmera a seu serviço, iludindo (no bom sentido) o espectador. Explora espaços e ordena um universo de referências muito simples em torno de um apartamento que se torna “o apartamento”. É onde Rana foi atacada enquanto tomava um banho. Ao contrário da tradição norte-americana que faria do episódio um caso de polícia, o diretor iraniano extraiu do fato um conflito psicológico marcadamente cultural.

O espectador ocidental inquieta-se com a reação de Emad, que mais parece querer resolver um problema pessoal, no contexto de um desagravo que parece não saber muito bem conhecer. Emad se perde na obsessão de mitigar um sofrimento que lhe é próprio, e que parece distante da tragédia vivida por Rana. Creio que o espectador ocidental oscila ao longo do filme. Eu balancei. Arfei. Não sabia para que lado correr ou para quem torcer. Um espectador mais sentimental pode até simpatizar-se com o vilão, ainda que por pouco tempo. A escolha do vilão também foge da lógica norte-americana do brutamontes desajustado.

A constante retomada com o enredo da peça norte-americana é um outro quebra-cabeças. Parece-me simbólico que um cineasta iraniano construa uma narrativa que se desdobre ao lado da narrativa do fim do mito do capitalismo eufórico. Vingança? Se positiva a resposta, o personagem principal, Emad, faz as pazes com o diretor e com uma tradição cultural esmagada por um conflito que opôs ocidente e oriente no cataclisma do choque de civilizações: é o tema do mais importante livro de ciência política da década de 1990, de autoria de Samuel Huntington.

Para o grande crítico do cinema, Roger Ebert, os filmes tem o poder de empatia e nos tornam pessoas melhores. Ao longo de “O Apartamento” vivemos uma estranha sensação de não termos certeza de saber para quem os nossos sinos batem. Isto é, não sabemos para quem torcermos, a usarmos uma linguagem maniqueísta. Esse é um dos grandes méritos conceituais desse belíssimo filme.

Pode-se também apreender de "O Apartamento" um fortíssimo argumento de gênero. Rana é humilhada, Emad parece se preocupar apenas consigo próprio.

Não há música acompanhando as cenas, exceto um cd tocado em um jantar ou uma flauta tocada na representação da peça norte-americana. Rana, no papel da esposa do caixeiro viajante, chora em seu enterro, exatamente ao contrário do que ocorre na peça original. Toda a tensão converge para uma cena ocorrida em um apartamento (daí o título do filme), que o diretor no entanto não registra, como uma homenagem à inteligência do espectador.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 05/04/2020
Reeditado em 05/04/2020
Código do texto: T6907781
Classificação de conteúdo: seguro