Simão do deserto, de Luis Bunuel

Simão do deserto, de Luis Bunuel

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O fanatismo religioso é uma desrazão recorrente e atávica. É causa de guerras, de perseguições, de violência, de genocídios, de incompreensões, de destruição do patrimônio cultural universal. Não se explica por nenhuma expressão de racionalidade. O fanatismo aparece e desaparece, e parece que está também no subconsciente. É também mais comum e contemporâneo do que se supõe. Não é uma reminiscência de um passado sem luzes. Luis Bunuel alcançou e revelou essa desrazão em “Simão do deserto”, filme de 1965. Rodado no México, quando Bunuel lá vivia, “Simão do deserto” é um filme curto (45 minutos), em sua maior parte ambientado em região desértica, tipicamente mexicana, mas que o cinema surrealista transforma em espaço onírico comum, na qual o protagonista principal, Claudio Brook, passa a maior parte do tempo no alto de uma coluna. Uma coluna dórica,ou coríntia, não importa.

“Simão do deserto” é um filme hilariante, conclusivo, mas de algum modo complicado para sintetizar. Há muitos pormenores que escapam a atenção do espectador. Há uma reserva de sentido de interpretação que o torna um filme novo, toda vez que o assistimos. Um quebra-cabeças, ainda que bem humorado. O clássico humor-negro do mestre catalão é sua maior virtude. E é também o maior desafio para o espectador. Cético, irreverente, Bunuel, tenho a impressão, sustenta que santidade não compensa, justamente porque alheia a qualquer forma de realidade. Os santos, nessa dinâmica, não frequentam a vida real.

O enredo é linear. Simão acredita-se um mártir e um salvador. É um estereótipo. Cabelo longo. Barba longa. O manto clássico. O olhar no infinito. O desapego a tudo. O desdém inclusive para com a própria mãe. Recusa-se a ser ordenado sacerdote porque não acredita que seja puro para receber tão grande honra. Faz milagres. É idolatrado. O tipo físico e mental é comum em várias ocorrências históricas.

Aqui no Brasil, remete-se à imagem de Antonio Conselheiro, o beato do sertão lá da Bahia, que dizia que um dia o sertão iria virar mar. De acordo com uma antiga canção (Sá, Rodrix e Guarabira) dá medo que algum dia o mar também vire sertão. Santos e beatos são especialistas em narrativas apocalípticas. Descrito por Euclides da Cunha nas páginas de “Os Sertões”, o nosso beato em tudo se assemelha com o personagem de Bunuel. É uma figura universal. Na linguagem barroca de Euclides da Cunha, o Conselheiro era de constituição mórbida, interpretava caprichosamente as condições objetivas do mundo exterior, o que se traduzia como uma regressão “ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie”. Exatamente como o Simão de Bunuel.

Logo na primeira cena Bunuel intercala uma imagem dos seguidores de Simão com um rebanho de ovelhas. São duas procissões, exatamente idênticas. Simão vive no alto da torre. Considera-se um pecador indigno. Entre os fiéis, um homem que não tinha as mãos. Ao ser perguntado os porquês da desgraça, respondeu que havia sido punido por ter roubado. Chorava, ao lado da mulher e dos filhos. Pedia ajuda. Simão lhe devolve as mãos perdidas. Para espanto de quem assiste a cena, o beneficiário do milagre nem se lembra de agradecer, uma vez lhe restituída as mãos. Pelo contrário, nem olha para trás, e ainda bate na filha pequena. Vejo nesse passo do filme uma perfeita analogia com os buscadores de milagres e de favores. Uma vez concedida a graça ou o favor, comporta-se como se o favor e a graça eram de fato devidos. Uma coisa é chamar os espíritos, outra é quando os espíritos chegam, e uma terceira quando vão embora...

Simão é atentado o tempo todo pelo diabo, em forma de mulher. Resiste. Porém a tentação suplanta sua boa intenção. Uma vez consumido pelo desejo vê-se em uma boate, onde dançam a sua volta. O diabo lhe explica que se trata de uma música radioativa, que Simão não entende, e que responde com expressão de cansaço. Não suporta o que não seja a glorificação de seu nome e de seu martírio.

Há no filme ainda o jovem Matias, padre tão cheio de alegria. Matias se esforça para agradar Simão. Corre como um pirilampo. Salteia. É bem intencionado. Matias, talvez uma alusão ao jovem que substitui Judas como apóstolo, é humilhado por Simão. Não possuía barba. Para essa mentalidade hipócrita que ronda todas as formas de fanatismo é a barba que faz a monge, a aparência que faz a essência. Engano.

O fanatismo nega qualquer forma de ciência. Bunuel, em “Simão do deserto” remete-nos ao fim daquele importante texto fundador da teoria psicanalítica (O Futuro de Ilusão) no qual Sigmund Freud nos adverte que a ciência não é uma ilusão. Ilusão é imaginarmos que o que a ciência não nos pode dar poderíamos conseguir em outra parte.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 02/04/2020
Reeditado em 02/04/2020
Código do texto: T6904515
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