Tempo de matar, de Joel Schumacher

Tempo de matar, de Joel Schumacher

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

"Tempo de Matar" é um filme baseado em novela de John Grishan ("A Time to Kill"). Dirigido por Joel Schumacher, é estrelado por Matthew McConaughey (advogado idealista), Sandra Bullock (estagiária que busca na causa solução para suas atribulações existenciais), Kevin Spacey (promotor público preocupado com os dividendos políticos que colheria no caso). Samuel L. Jackson protagoniza o negro injustiçado. O canadense Donald Sutherland representa o advogado alcoolista. Seu filho, Kiefer Sutherland, o sulista chauvinista e racista que aderiu à Klu Klux Khan. A obra trata de conflitos sociais, racistas, em ambiente de muita tensão. Um filme forte.

A narrativa é dinâmica, rápida, reproduzindo clichês e lugares-comuns da tópica judiciária. Dois rapazes (brancos) embriagados correm com uma caminhonete, jogando garrafas num moço negro. Criam caso em mercearia de afro-americanos. Violentam Tonya, uma moça negra, que, encontrada, foi internada, em estado de choque. O filme passa-se numa pequena cidade do sul dos Estados Unidos. Prenderam os criminosos. O pai da menina, prevendo que iria vingar a violência feita contra sua filha, incrédulo da justiça dos brancos, procurou advogado, pedindo ajuda, ainda antes de consumar a vingança, avisando que tomaria providências. Desconfiado de que a justiça absolveria os moços que estupraram sua filha, o pai da menina assassina-os em pleno tribunal. Feriu também um policial, cuja perna será amputada. Fez justiça com as próprias mãos. Quem não o faria, naquelas condições?

O advogado defensor do pai vingador foi ameaçado por setores mais conservadores da cidade. O líder desse odioso grupo era irmão de um dos moleques inescrupulosos que foi assassinado pelo pai revoltado. Grupos de defesa de direitos civis sugeriam que o criminoso mudasse de advogado. Em atitude firme, mantém-se aliado do jovem advogado, que buscava conselho com um colega, que bebia muito, que fora seu professor, e que estava impedido de atuar em juízo, certamente por problemas decorrentes do alcoolismo. As pressões fazem com que a mulher do advogado e sua filha deixem a cidade. Dada a dificuldade em se constituir corpo de jurados imparcial, a defesa tentou desaforar a causa, pretendendo que o julgamento fosse feito em outra cidade. O juiz chamou o advogado defensor do assassino em sua casa, adiantando que iria indeferir o pedido de desaforamento, de certa forma deixando entender que não era simpático às teses da defesa. Estava claro (literalmente): iria condenar.

O tumulto que ocorreu na frente do tribunal comprova as tensões sociais que o julgamento suscitava. Um membro da Klan foi queimado vivo. A casa do advogado de defesa foi queimada. Os jurados queriam condenar o réu, que morreria na câmara de gás. Um policial ferido testemunhou em favor do acusado. Descobriu-se que o médico que avaliava o réu havia sido condenado por estupro. A condução do processo, fio central da narrativa, indica que a condenação do réu iria certamente ocorrer. Não havia mais recursos técnicos, que poderiam alterar ao desdobramento dos acontecimentos. Apenas um evento “Deus ex machina”, um milagre, é que poderia redirecionar os fatos.

O advogado de defesa, que era branco, intuiu que deveria pensar como membro da classe dominante. Elementar. Sem mais argumentos jurídicos, restavam-lhe recursos de retórica. Deveria convencer o corpo de jurados, discursando como falaria para convencer a si mesmo. Pediu que fechassem os olhos e narrou o estupro da filha do réu, passo a passo, com impressionante riqueza de pormenores. Quando da conclusão de sua fala, pediu que imaginassem que a menina violentada era branca e em seguida ordenou que abrissem os olhos. A comoção foi geral. O recurso de oratória utilizado foi eficiente. Não havia regras específicas que protegessem o acusado, que foi socorrido por artificial construção argumentativa, que sugere reflexões em torno do compromisso do orador com a verdade.

O filme desafia construído cultural propagandístico que acredita que americanos são cientes de seus direitos, como se estivessem no sangue, epidérmicos, vividos cotidianamente. Há certa falsificação, indireta, o chamado lado escuro da tradição jurídica ocidental. Tem-se a impressão de que a morosidade procedimental e a iniquidade processual justificariam justiça pelas próprias mãos. Será?

Ciente dos direitos do réu, seu advogado evitou o "plea-bargaining system", através do qual o réu confessa em benefício da diminuição do castigo. Eventual confissão substituiria a pena de morte pela prisão perpétua. O advogado apresenta-se como um idealista, sem demonstrar excessiva preocupação com dinheiro embora estivesse à beira da insolvência. O juiz é o típico modelo olímpico, cuja aparente distância disfarça perigosas relações políticas, e sua aversão a alguns precedentes confirma a observação.

O advogado de defesa argumenta “ad rem”, ou “ad humanitatem”, depositando a validade da tese na demonstração das causas do fenômeno. O assassinato teve como causa a violência sofrida pela filha do réu. A persuasão emocional exerceu papel eficiente, harmonizando o irracional com a realidade fática.

"Tempo de Matar" indica uma justiça desejada como supremo valor, sobrepondo-a à dogmática que a condiciona. Invoca antigas teses jusnaturalistas, acenando, porém, para o consenso como condição de sobrevivência e aceitação do jurídico. O drama judicial é um embate dialético, cuja síntese é o resultado do poder de persuasão, num mundo dividido entre bandidos e mocinhos. Tudo muito norte-americano. A indústria cultural apodera-se da imaginação estética, reformatando conteúdos morais, reduzindo os conflitos que agitam a existência à eficiência de um discurso melodramático, como se todas as injustiças fossem resolvidas por um herói a espera de ação. Subtrai de cada um de nós a responsabilidade que radica na firmeza do caráter.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 01/04/2020
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