XXY, Argentina, de Lucia Puenzo
XXY, Argentina, de Lucia Puenzo
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Inés Efron protagoniza Alex, que nasceu com características sexuais masculinas e femininas. Vive um conflito interno que se amplia e se externaliza na medida em que atinge a adolescência. Alex nasceu em Buenos Aires, de onde os pais, Kraken (Ricardo Darín) e Suli (Valeria Bertuccelli) partiram para o litoral uruguaio, onde passaram a viver, como medida de proteção. Pretendiam uma vida distante da capital. Queriam uma vida pacata, o que entendiam, protegeria Alex. Haveria tempo para decisão, quanto a uma eventual cirurgia. A escolha era de Alex.
A fotografia é extasiante. Filmado em Maldonado, no Uruguai, em “XXY, Argentina” há sequências e planos encantadores. Mar, areia, lua, sol, tem-se uma alegoria da combinação, da beleza e da perfeição da natureza, reveladoras de que o fato biológico com o qual o filme se ocupa é um fato natural, que deve ser tratado com naturalidade. Há uma dualidade que se acomoda na unidade. Sim, “eu sou os dois”, diz Alex em algum momento desse filme.
Kraken é biólogo, ocupa-se com a proteção de tartarugas marinhas. A primeira cena é uma das chaves compreensivas do filme. Cuidando de uma tartaruga resgatada Kraken afirma tratar-se de uma fêmea: “una hembra”. Ao longo do filme descortina-se o cuidado, o respeito e o amor que tem para com Alex. Sua angústia radica na necessidade de proteção, que pais devemos a filhos, sob todas as condições, e incondicionalmente. Kraken em nenhum momento parece preocupado com a situação, do ponto de vista biológico, ainda que biólogo fosse. Sua preocupação é com o bem estar e com o respeito que se deve a um ser humano, de quem era pai. Com uma atuação serena Ricardo Darín comprova toda a fama que o precede.
Retomemos o enredo. Kraken e Suli são visitados por um casal (acompanhados de um filho, Héctor). Trata-se de um cirurgião, especialista no tipo de operação que se pensava submeter Alex. O cirurgião (protagonizado por German Palazios), no entanto, representa o oposto de Kraken, nas relações afetivas que há entre pais e filhos. O cirurgião hostiliza o filho (também adolescente) na suspeita de que o menino possa ser homossexual. Essa tensão é um dos pontos marcantes do filme, e substancialmente (penso) sua lição mais emblemática. Com quem o leitor se identificaria, com a simplicidade e a compreensão de Kraken ou com a técnica e o preconceito do cirurgião?
“XXY, Argentina” é um filme sobre o respeito humano. Mas também é um filme que chama a atenção para situação dramática que o obscurantismo teima em não compreender. O conflito de Alex e o inesperado dilema de Héctor pluralizam uma situação que se pretende singular. O tema da sexualidade, nesses termos, é tratado no contexto dos temas elementares da vida, pensada nas possibilidades de felicidade e de realização humanas. “XXY, Argentina”, mais do que um filme, é uma lição de vida, desprovida de qualquer falso moralismo ou de qualquer pieguice. É um filme sério, sobre um problema sério. Em tempo. A atriz que protagoniza Alex, na vida real, nasceu com a condição do papel que representa.