O diário de uma camareira, de Luis Bunuel
O diário de uma camareira, de Luis Bunuel
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Os filmes de Luis Bunuel tocam em questões seríssimas e profundas, ainda que rodados com humor e com uma bem disfarçada demão de trivialidade. Lembra-nos a frase latina “ridendo castigat mores”: é rindo que se castigam os costumes, dito espirituoso com o qual os arlequins ornamentam seus teatros. Bunuel lembra-nos também que de pequenas sutilezas podemos extrair verdades universais. É o caso da obsessão com a limpeza que a patroa mal humorada utilizava para tiranizar a doméstica cuja vida infernizava em “O diário de uma camareira” que Bunuel dirigiu em 1964.
“O diário de uma camareira” é a tradução comercial de “Le journal de unna femme de chambre”. Tradução um pouco imprecisa porque para nós “camareira” é quem que cuida de quartos de hotéis. A personagem central desse filme, Célestine (protagonizada por Jeanne Moureau), é uma empregada doméstica, com múltiplas funções, que o francês traduziria por “la bonne”. Entre nós, um resquício da escravidão. O filme é ambientado na década de 1920.
Célestine é uma parisiense que vai trabalhar em uma casa elegantemente decorada. A casa se localiza no interior da França. Luis Bunuel conta-nos em seu livro de memórias (Meu último suspiro) que parte do filme foi rodado em Milly-la-Forêt. Célestine viajou de trem, impressionando-se com a beleza do interior do país. O patrão é um senhor obcecado com limpeza e com botas. Ele a assedia, pedindo que calce botas femininas que guardava em um armário misterioso. Pede também para tocar a panturrilha de Célestine. Mata uma borboleta com uma espingarda de calibre grosso. É a desproporção em forma de pessoa.
Na casa há também a filha e o genro do patrão. A filha é uma senhora frígida, que declara ao padre (protagonizado pelo roteirista do filme, Jean-Claude Carriére) que não consegue saciar ao marido. Pergunta ao religioso como acariciar ao marido. Este último, o insaciável marido, também assedia a Célestine e as demais empregadas da casa. Célestine, para se defender, afirma que tem sífilis. Hostilizam Célestine porque ela é parisiense. Tem-se um conflito recorrente em sociedades que transitam da vida rural para a vida urbana. O pessoal do interior implica com o esnobismo do pessoal da capital, que por sua vez despreza tudo o que não é urbano; valorizam apenas a paisagem rural, desde que livre de camponeses rudes.
Há ainda um caseiro, um factótum. É pedófilo e extremamente reacionário. Odeia imigrantes. Aliado do sacristão, que odeia judeus e que redige panfletos reacionários. São monarquistas. Tudo o que Bunuel abominava: reacionarismo, totalitarismo, monarquismo, chauvinismo. Não se pode esquecer que Bunuel afastou-se de Salvador Dali, seu companheiro na Geração de 27 (ao lado de García Lorca, de quem Bunuel se afastou por outras razões) justamente porque Dali teria sido cooptado pela ditadura de Francisco Franco. Nunca reataram. Bunuel não perdoou a traição. Dali e Bunuel trabalharam juntos em dois filmes, “Um cão andaluz” (1929) e “A idade do ouro” (1930). Essa parceria estigmatizou Bunuel como o cineasta do surrealismo. Sua influência em Pedro Almodóvar confirma o estigma.
“O diário de uma camareira” é um filme sobre luta de classes. É um filme sobre papeis que protagonizamos na vida social. Há nós interpretativos desafiadores. A aproximação de Célestine com o caseiro é um deles. O caseiro violentou e matou uma menina que vivia no lugar. A rapidíssima cena do javali que persegue o cordeiro é explicativa. A relação de Célestine com o caseiro é de difícil elucidação. Comparo com a dificuldade que temos ao tentarmos esclarecer os nossos sonhos. As pedras não se encaixam. Célestine preparou a prova contra o caseiro, que entregou à polícia. As pedras ficam ainda mais difíceis de compreensão. Também não se compreende os porquês da aproximação de Célestine com o vizinho, e o desate desse relacionamento.
Em “O diário de uma camareira” tem-se uma profusão de possibilidades interpretativas. A narrativa flui como um sonho, ainda que aparentemente bem ordenado. Ao fim, tem-se a impressão que todos se cansam dessa ordem bem comportada. Diretor e personagens tomam rumos próprios e acomodam-se em seus mundos de medos e angústias: é o lado sombrio dos sonhos. “O diário de uma camareira” é uma incursão no mágico submundo das frustrações contidas. Com um humor que castiga os costumes, sem nenhuma piedade.