Os sete selos, de Ingmar Bergman
Os sete selos, de Ingmar Bergman
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O tema dos “sete selos” é uma narrativa enigmática que se encontra no Livro de Apocalipse. Nesse atordoante texto do Novo Testamento, na medida em que os “selos” são revelados tem-se um conjunto de eventos, descritos de forma assustadora. Nos primeiros quatro selos há uma simbologia de cavalos (branco, vermelho, preto e amarelo): aparecem então os “quatro cavaleiros do Apocalipse”. Os quatro selos são escatológicos: disputas, guerra, fome, morte. No sétimo selo tem-se o enigma das sete trombetas que soam, os sete anjos e o desfecho: é o juízo final.
Esse conjunto de símbolos é a moldura na qual Ingmar Bergman traduz a noção da filosofia existencialista, no sentido de que o homem é um ser para a morte, na formulação de Martim Heidegger. Penso que Bergman acrescenta que o trânsito que vivenciamos do nascimento ao fim é desprovido de qualquer sentido: é a filosofia do desespero, a única que paradoxalmente faria sentido, e que nos acena com alguma esperança. Na lembrança da caixinha de Pandora, essa é a última que morre. Tenho certeza.
“Os setes selos” é um filme de 1957. É um P&B denso de simbologias e provocações hermenêuticas. Um filme difícil e, ao mesmo tempo, desafiador e encantador. “Os sete selos” vale, no mínimo, por duas cenas: a do cavaleiro (Max von Sydow) jogando xadrez com a morte (Bengt Ekerot) e a da dança da morte com a foice e seus seguidores. Dá vontade de repetir e assistir indefinidamente, ou de pendurar na sala uma reprodução desses dois momentos simbólicos da história do cinema.
Um céu escuro no qual paira uma assustadora ave de rapina dá início às fantasmagóricas imagens. Cavalos correm pela praia. Antonius Block, o guerreiro (von Sydow, que protagonizou o padre em “O Exorcista”) ajoelha-se e ora em profunda conexão com o infinito. O ambiente é medieval nas alegorias e nas imagens. Há tipos medievais em todas os momentos do filme: bufos, camponeses, tocadores de flauta, bobos da corte, trupes, espadas, guerreiros, autos-de-fé, castelos. Principalmente, uma intensa religiosidade indicativa de um teocentrismo sem limites.
Antonius retorna das cruzadas e vê seu país devastado pela peste. Na compreensão comum a peste era punição que Deus lançava aos homens. Uma conta que tínhamos que pagar. Ainda tem gente que pensa assim. É o desespero, a angústia e o pavor que toma conta de todos, que buscamos soluções imediatas e simples para problemas eternos e complexos. Em “Os sete selos” a simples notícia de um contaminado tornava-o um pária, uma criatura hedionda que todos evitavam. E não se poderia exigir outra solução.
Antonius busca um significado para vida. Quer conhecimento. Refuta crenças e superstições. É um homem perturbado. Iludido por um pregador religioso, deixou família e castelo para lutar nas expedições cristãs pela tomada de Jerusalém. É um autêntico cruzado, na roupa, na forma determinista e fatalista de pensar, no questionamento de valores e de perspectivas de vida. Só não tem o otimismo daqueles que iam lutar por Jerusalém, uma terra mais do que toda frutífera em prazeres, como ditava a propaganda da época.
Permaneceu 10 anos na guerra. Metáfora que lembra Ulisses ao retornar de Troia, onde era esperado pela fiel Penélope. Antonius tinha a vida como um terror sem sentido. O medo estava em toda parte o que, no entanto, não retirava a validade do medo como instrumento para nossa tomada de decisões. Para Antonius, “devemos fazer de nosso medo um ídolo e chama-lo de Deus”. Pense o leitor no significado dessa passagem que carrega em poucas palavras o que Freud argumentou em “O futuro de uma ilusão”. A crença, nessa ótica, predicaria na ignorância, na incerteza, no desconhecimento.
Antonius encontra-se com a morte logo no início do filme. Em forma humana, vestida de preto, com um rosto reluzentemente pálido, a morte aceita o desafio de Antonius, que pretendia adiar a hora final até ao término da disputa. Há como negociar com a morte? Personificada, a morte irrita-se com Antonius, a quem acusa de não parar de fazer perguntas.
O sétimo selo” é assim, uma reprodução iconográfica de um diálogo entre personagens em permanente dúvida para com o destino. Não sabem (mos) se o destino é criação nossa ou (mais uma) explicação simplista pelos erros de nossas escolhas. Essa aporia é, creio, o fio condutor desse filme, ao mesmo tempo elegante e acadêmico. Ainda que pouco verossímil, “O sétimo selo” é um filme sobretudo humano, atemporal e desconcertante. Conceitual e artístico, toca a existencia material e real. Essa é a que conta, para quem temos que enfrentar as vicissitudes da vida.
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