Roma cidade aberta, de Roberto Rossellini

Roma cidade aberta, de Roberto Rossellini

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

A fase ultrarrealista de Roberto Rossellini, cineasta italiano (1906-1977), é marcada por três filmes (Roma cidade aberta, Alemanha ano zero e Paisá) que tem como tensão central o deslocamento e o sofrimento de crianças, especialmente por conta da perversidade dos adultos. “Roma cidade aberta” (1945) explora essa tensão.

Mussolini já havia caído (e fora executado em praça pública). Fascistas ainda havia. Eram aliados dos nazistas que ocupavam parte do país. Os americanos chegavam. A situação não melhoraria muito. Quanto a esse último passo, chegada dos americanos, lembra-se da última cena de “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni. O menino, sem saber da morte do pai, subia no tanque e gritava: vencemos! Para Rossellini, cinquenta anos antes, e no calor da tragédia, não há vencedores. Rossellini é um humanista. Em “Roma cidade aberta” tem-se limite pouco nítido entre o surreal, o absurdo e o trágico.

“Roma cidade aberta” foi filmada no caos. Rossellini fotografou o que os italianos de fato viviam. Prisioneiros de guerra são extras e figurantes. A desordem é total. A cidade estava aberta a todo tipo de incidente e de violência. Figurativamente, remete-se a um estado pré-contrato social, ainda que não tenhamos provas empíricas de que o tal contrato tenha efetivamente sido pactuado. Acreditar nessa narrativa é o mantra dos seguidores de Locke, de Rousseau e mais recentemente de John Rawls. Em “Roma cidade aberta” o homem torna-se o lobo do homem, alegoria de Thomas Hobbes, circunstancialmente aplicada a Roma, que é a cidade simbolizada pela loba que alimentou aos gêmeos Rômulo e Remo, abandonados no Rio Tibre.

“E quando acabará a guerra?” parece ser a pergunta que todos fazem, o tempo todo. Os nazistas estavam em Roma. Sabiam que havia uma feroz e bem organizada resistência, cujos líderes prendiam e executavam sumariamente. O mais lúcido crítico brasileiro, Pablo Villaça, tem razão, não há nazista bom, ainda que comentando outro filme. Essa premissa aplica-se também para o filme de Rossellini.

Em “Roma cidade aberta” há traidores por toda a parte. A fome muda comportamentos e fragiliza padrões de caráter. A moeda circulante é a oferta de um pouco de comida, em forma simbólica de pão, o que reflete a intensa religiosidade de Rossellini, com remissões à última ceia. O enredo é minimalista. Personagens centrais não são muitos.

As crianças formam uma brigada juvenil, intimorata, que desafia os alemães. A narrativa centra-se na caça que os nazistas fazem ao Engenheiro Manfredi (protagonizado por Marcello Pagliero), um dos líderes da resistência. Manfredi procura refúgio com um amigo, Francesco (o ator é Francesco Grandjacket), que estava prestes a se casar com uma viúva, Pina (representada por Anna Magnani). Pina tinha um filho. O menino era corajoso, afeiçoava-se com o futuro marido da mãe, a quem pedia para chamar de pai. Há também uma referência moral nessa hora difícil, o Padre Pietro Pellegrini, protagonizado por Aldo Fabrizi, conhecido ator italiano. Interpretação intensa, sem estilizações e clichês. Pellegrini revela força e coragem que poucos tem em horas tão difíceis.

O neorrealismo italiano confunde o espectador não avisado, porque parece documentário, ainda que conduzido com um enredo dramático de superfície, mas que é de fundo. “Roma cidade aberta” é permanente aviso de que tragédias nos rondam, o tempo todo. Rossellini interpretou a tragédia totalitária. Parodiando Glauber Rocha, um fascista pode matar outro fascista, mas um fascista nunca se propõe a destruir o modelo de onde busca o ódio e a incompreensão. “Roma cidade aberta” é um aviso contra os perigos do totalitarismo e do belicismo. E assim persiste.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 21/03/2020
Reeditado em 21/03/2020
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