Cidadão Kane, de Orson Welles

Cidadão Kane, de Orson Welles

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Lançado em 1941, Cidadão Kane, de Orson Welles, é um exemplo do que os teóricos da interpretação denominam de “reserva de sentido”. Isto é, o filme permite muitas leituras, indagações e constatações, que variam no tempo. Já se esquadrinhou cada plano, sequência, cena, fala e implicações desse filme icônico. Welles tinha 24 anos quando realizou esse filme, o que lhe garantiu todas as prerrogativas de menino-prodígio. Há algum senso comum de que Cidadão Kane seria o melhor filme de todos os tempos, isto é, se possível levar a sério essa decisão do board do American Film Institute.

Cidadão Kane é centrado em Charles Foster Kane (protagonizado pelo próprio Welles). Também é senso comum que o filme explora caricata referência a William Randolph Hearst, milionário do setor de comunicações. Ao que consta, Hearst contrariou-se com o conteúdo do filme, retardando o seu lançamento. Hearst não perdoou a paródia de Welles.

O tema mais comum referente a Cidadão Kane é o enigma da expressão “rosebud”, que Kane pronuncia no momento de sua morte. É a base da linha narrativa, ponto de partida para a cosmologia própria desse deslumbrante filme. Com o pretexto de se encontrar o significado da expressão visita-se a vida de Kane, em vários momentos, de formas sobrepostas, com total desconsideração por uma evolução linear. É uma das mais apreciadas características da obra prima de Welles. Repórteres procuram o significado da expressão “rosebud”. Que mistério é esse? Para isso, conversam com várias pessoas que conviveram com o jornalista. Na medida em que as reminiscências surgem, o espectador é envolvido na trajetória de Kane. Não se consegue livrar do poder dessa personagem. Um imã conceitual prende o espectador na poltrona.

Há pista para o enigma. Na cena final, impressionante, são queimados os objetos da exuberante coleção de itens de Kane (era um colecionador compulsivo, o que incluía estátuas e todos os tipos de bugigangas e objetos, inclusive pedras de castelos escoceses e de templos birmaneses). Não se pode falar de spoiler de um filme lançado há quase 80 anos, e de conhecimento obrigatório para quem gosta de cinema. Prossigo, com essa licença. Há indícios de que “rosebud” seja a marca do pequeno trenó, que Kane brincava quando criança, antes de ser separado da mãe.

Essa pista é robusta. Indica um conflito edipiano. Kane lembra-se permanentemente da mãe. Em uma das cenas, um amigo próximo afirma que o que Kane mais buscou na vida foi o amor. Típico problema freudiano. Os dois casamentos de Kane, com a sobrinha do presidente, e depois com a sofrível cantora de ópera, comprovam essa premissa psicanalítica. O ataque de fúria, quando a segundo esposa comunica que vai deixa-lo, é indício dessa desordem emocional.

Atente-se a forma fria como Kane tratava a primeira esposa. Perceba-se como Kane humilhou a esposa cantora, que nada cantava, e para quem construiu um teatro em Chicago. A cena na qual ele bate palmas sozinho após a inauguração da ópera é comovente. Welles desconstrói esse afeto, na cena seguinte, na qual Kane permite e publica uma crítica pesadíssima à atuação da esposa. Ele mesmo concluiu o texto, dada a embriaguez do autor original, que é essencial na compreensão de sua estrutura psicológica. A relação de Kane com as esposas era ambígua. Ela as amava. Porém, tem-se certeza, o que mais queria era ser amado por elas, não importa o preço.

Uma segunda interpretação, no sentido de que “rosebud” seria uma associação com a genitália feminina também segue essa linha. Em ambos os casos, nota-se a dependência para com as mulheres. A mãe, no caso do trenó que lembra a infância, ou as esposas, na suposição de que “rosebud” signifique o clitóris. A obsessão era latente e flagrante. O enigma pode ser decifrado pelos espectadores. Os protagonistas desconhecem o sentido da expressão, embora especulem. As personagens do filme não descobrem o que seja “rosebud”. Resignados, concordam ao fim que uma palavra não explica a vida de um homem, e dão o caso por encerrado.

E porque o enigma de “rosebud” é matéria para detetives, pode-se apontar para um outro ponto que torna Kane uma obra contemporânea. Kane definia-se como “uma autoridade no que as pessoas pensavam”. Era um formador de opinião. Seus jornais ditavam comportamentos. Kane parecia ser um progressista. Em editorial fixou uma carta de intenções, declarando-se defensor dos trabalhadores e dos explorados. Tentou eleger-se governador. Desistiu, porque chantageado por seu opositor, que sabia que Kane tinha uma amante (a cantora, com quem se casou em seguida). Não era tão poderoso assim. Nessa cena, ainda que tenha mantido uma integridade para com o que vivia com a amante, mostrou-se um fraco. Não reagiu à altura. Gritou. Como uma criança mimada.

Ainda hoje Cidadão Kane é um filme que esguicha surpresas no espectador. Oscila-se entre a simpatia e o desprezo para com o milionário dono do jornal. Quem não tem pena de um menor abandonado pela mãe? Quem não se seduz com as opções populistas de Kane? Quem não o despreza pelo apego às estátuas e tudo o mais que colecionava? Quem não se surpreende negativamente com a forma com a qual Kane chantageava as esposas, dando tudo, e ao mesmo tempo negando tudo também?

Há um outro ponto que chama a atenção. A fortuna de Kane, herdada de um negócio da família em relação a uma mina de ouro é mal explicada ou, no limite, é secundária no filme. Trata-se de uma mina de ouro herdada pela mãe. A mãe é impassível quando entrega o filho aos administradores da fortuna. Há algum mistério, que o roteiro recusa qualquer importância. Há uma fabulação da riqueza, técnica narrativa que fascina os norte-americanos.

Colocado em seu devido contexto histórico Cidadão Kane é um filme dos tempos do “New Deal”, de Franklyn D. Roosevelt. Kane é o típico “newdealer”, um homem de esquerda, como qualificam os conservadores norte-americanos. Nesse sentido, no tradicional fracionamento político que há nos Estados Unidos, Kane seria associado aos democratas. O seu jornal, o New York Daily Inquirer, não perdoaria o populismo norte-americano de hoje, conservador até a medula. Porém, as motivações políticas de Kane transcendem às boas intenções. Kane é um manipulador. Apresenta-se como um intransigente defensor do “cidadão”, postura que talvez justifique a opção na escolha do título do filme.

Cidadão Kane, na minha compreensão, muito provavelmente equivocada, é também uma advertência para com o desconforto da abastança, no sentido ético de que é o trabalho que justifica a fruição de bens materiais. Kane é vingativo, cruel, perdulário, pedante. Kane é também doce, apaixonado, comprometido, sincero. Muito mais do que o enigma de “rosebud”, que pode ser um problema falso, creio que o núcleo dessa fascinante obra consiste em ouvirmos em Kane, constantemente, a provocação da esfinge da tragédia grega, que pretendia ser decifrada, sob pena de devorar o interlocutor.

Decifra-me, ou devoro-te, palavras da esfinge, é um bom mote que constrói relações de mútuo afeto e carinho. Pode ser uma das chaves interpretativas do universo de Kane, que tudo tinha, ou que tudo podia dar, exceto o que mais se busca, porque não tinha, e o que mais se tem dificuldade em genuinamente oferecer: afeto e amor.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 15/03/2020
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