Pulp Fiction, de Quentin Tarantino

Pulp Fiction, de Quentin Tarantino

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Ops! Mais comentário sobre Pulp Fiction? Sim, mais um. Esse filme de Q. Tarantino foi lançado no Brasil em 3 de março de 1994. Assistido hoje, percebe-se que vivíamos em outro mundo. A tecnologia daquele tempo parece-nos incompreensível. É peça de museu o telefone celular usado por Vicent Vega (John Travolta) na cena em que conduz Mia Wallace (Uma Thurman) para uma injeção de adrenalina, logo após a cena da overdose, que seguia a cena da dança solo. A tecnologia mudou. A violência que o filme retrata, no entanto, permanece, com mais requintes tecnológicos...

A trilha sonora é inconfundível e atemporal. A cena da dança (no concurso de twist no Jack Rabbit’s Slim Bar, cujo cenário custou 150 mil dólares do orçamento) é provavelmente uma das cenas de dança mais bem feitas da história do cinema. Não deve nada a Fred Astaire (“Cantando na chuva”) ou ao próprio Travolta, tanto nos “Embalos de Sábado a Noite”, quanto na contradança com Olivia Newton-John em “Nos tempos da brilhantina”. Revista hoje a cena da dança, entende-se o cinema na sua mais categórica expressão harmônica. A cena da dança é inigualável.

A narrativa é naive, ingênua, porém cheia de referências, de pistas, de desafios para quem gostamos da cultura pop. O garçom vestido de Buddy Holy (1936-1959), guitarrista e cantor da era de ouro do rock and roll, pergunta a Mia Wallace se quer o seu milk shape à la Martin and Lewis ou a à la Amos and Andy. São duas duplas de comediantes, a primeira de brancos (Dean Martin e Jerry Lewis) e a segunda de negros (Freeman Gosden e Charles Correll); estes dois últimos representavam as comédias do Harlem. A pergunta, entende Mia Wallace, consistia em opções: se queria o milk shake com baunilha (branco) ou com chocolate (negro). A passagem (como tantas outras) fica perdida na tradução ou no distanciamento com o bloco de referências do filme. Os diálogos sustentam comentários infindáveis.

O enredo consiste em um conjunto de quatro histórias marcadas por muita violência e por um personagem, Jules Winfield (Samuel L. Jackson), que vive à busca de redenção. Sua violência é acompanhada de uma citação do Antigo Testamento (Ezequiel 25:17) que os fanáticos pelo filme discutem se é direta do texto bíblico ou se há interpolações de Tarantino. O leitor que procure a resposta, se acha que vale a pena. Acho que vale a pesquisa.

Há cenas que evocam toda a história do cinema: luta de box (e aí temos Bruce Willis), carros conversíveis, subúrbios de Los Angeles, rebeldes à la James Dean que falam com as gengivas, restaurantes art deco, deliciosos hambúrgueres, sósias de Marylin Monroe, imagens que de algum modo refletem a fragilidade temática e existencial do cinema de massa. Pistolas se multiplicam como palitos de dente. Há sangue que jorra o tempo todo. Há usuários de droga mostrando-nos justamente o que não podemos ou que não devemos fazer.

“Pulp fiction” é pastiche geral que faz amálgama de uma poderosa indústria, que vende bens fungíveis e imateriais. É um filme para quem gosta de cinema, ainda que muitos detestem, o filme, e o cinema. É um filme para quem tem memórias de um tempo em que havia utopias. E há quem não acredita mais em utopias. É um filme que nos faz refletir também sobre a solidão, passado esse quarto de século do lançamento, um tempo todo, formado pelas mais variadas formas de ausência, que tanto sentimos, e que nos confunde com nossas histórias, as reais vividas e as dos filmes que assistimos, que misturamos em nossa memória seletiva e ao mesmo tempo afetiva.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 06/03/2020
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