Aquarius, de Kleber Mendonça Filho
Aquarius, de Kleber Mendonça Filho
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Pode-se dizer que um filme é envolvente quando o espectador toma posição amistosa em relação à personagem, descolando-a do enredo. O espectador vê tudo pela ótica da personagem. Nesse caso, toda a narrativa torna-se uma extensão da percepção que a personagem faz de sua realidade, ainda que o espectador tenha consciência de que se trata de uma realidade ficcional, se possível essa contradição em termos. O espectador envolvido pela personagem passa a apoiá-la em todos os passos, até o fim. Na dinâmica clássica dos enredos dos dramas emocionais esse apoio é incondicional. Não são raros os casos que espectadores assumem a personalidade das personagens.
Essa lógica é desafiada no enredo de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. A quebra desse paradigma é o ponto mais alto do filme, é sua redenção, pelo menos do ponto de vista da estrutura narrativa. O espectador comum (e eu penso ser um deles), no entanto, oscila. Há um apoio inicial à luta da personagem central (Clara, protagonizada por Sonia Braga). No entanto, também para o espectador comum, a resistência à especulação imobiliária, que é verossímil, torna-se uma teimosia, uma idiossincrasia, uma tolice. O espectador comum tende a se afastar da personagem que carrega o enredo. Há necessidade de uma definição, por parte do espectador, que a partir do meio do filme dependente da personagem, do enredo, e do fecho que diretor e roteirista preparam. Mas o enredo também não se define.
No caso de Aquarius alguma fragilidade narrativa decorre de um final que não se sustenta, porque não se explica, e porque (no meu entender) não se comunica com os demais aspectos narrativos do enredo. Recorre-se à uma figura do teatro clássico, o “Deus ex-machina”, um algo inesperado que coloca as coisas no devido lugar. Trata-se de uma técnica artificial de se encerrar uma tragédia, com o aparecimento súbito de uma divindade em cena. Em Aquarius, porém, essa técnica também não surte efeitos. A divindade é algum documento encontrado que incrimina os construtores, e não se sabe do que se trata. Se o espectador tivesse deixado o filme dez minutos antes do fim, não haveria diferença. Ficar até o fim não resolve o mistério.
Pode-se argumentar em sentido contrário, na pretensa lógica de que Aquarius seria uma obra aberta, a ser adaptada pela sensibilidade do espectador. Menos pior. Tem-se como brinde a possibilidade de se imaginar o desate. Essa constatação, porém, não retira do filme qualidades técnicas que o recomendam como uma grande obra. Um excelente filme brasileiro. As personagens são reais. Os diálogos são naturais. O Brasil retratado de fato aconteceu e acontece.
Vamos ao enredo. Tem-se a história de Clara. Enfrentou um câncer, uma mastectomia, perdeu o marido, criou três filhos e vivia em um apartamento em um prédio modesto, na praia de Boa Viagem, em Recife. Clara mostra um fortíssimo apego ao passado. Em algum momento lembra que o que remete a um passado bonito é “vintage” e o que remete a um passado feio é simplesmente “velho”. Tenta ser “vintage”, o tempo todo. Coleciona e escuta long-plays. Desenterrou “O quintal do vizinho”, de Roberto Carlos. Parece ser uma jornalista, com grande conhecimento musical, com domínio de música popular e também de Villa-Lobos, sobre quem teria escrito um livro. Lembra-nos Ana Maria Pereira Bahiana, nossa inigualável crítica cultural.
Há cenas de época, que provavelmente preparam o espectador para esse embalo nostálgico. Há chevettes, brasílias, fuscas e opalas. De algum museu retiram um toca-fitas road-star e placas amarelas da década de 1980. O narrador chama a atenção para um tempo em que tirávamos fotografias ao lado de carros. Automóveis simbolizavam ascensão e estabilidade social, de modo intenso. O álbum de família do leitor dessa resenha talvez tenha alguma foto na qual o dono exibe seu carro, alguma vez com a chave na mão.
Essa obsessão com o passado pode ser uma chave interpretativa desse filme. Clara mostra com orgulho o álbum Double Fantasy, com Lennon e Yoko na capa, e com um recorte do Los Angeles Times, sobre os planos que o ex-beatle tinha para o futuro. Ele foi assassinado logo no mês seguinte ao do lançamento de disco emblemático. Para Clara, era uma “mensagem na garrafa”, o que nos remete a outra canção simbólica da década de 1980, “message in a bottle”, dos ingleses do The Police.
Clara coleciona fotos que guarda em álbuns que hoje já não se usa mais. Mergulha em Boa Viagem, com a vista dos salva-vidas, como se não houvesse a ameaça dos tubarões, vítimas do desequilíbrio resultante da construção do porto de Suape. Apegada a tudo que a cercava, o que pode ser psicologicamente sintomático para quem enfrenta a ameaça que enfrentou, o câncer é uma morte permanente, não admite vender seu apartamento para uma construtora que pretendia derrubar o prédio e construir um novo empreendimento. Ela morreria com a entrega do apartamento. Resolve resistir.
Essa é a tensão aparente do filme: Clara versus a construtora. Mas há uma tensão psicológica mais profunda. Clara versus a realidade, na qual a realidade é a manifestação do presente. Sob uma suposta tensão tecnológica entre o vinil e o MP3, que hoje já pouco diz, se cotejado com as fórmulas de streaming de mídia que há, Clara persiste na sua recusa.
Ao longo dos conflitos de Clara o diretor pendurou vários outros temas: a empregada doméstica explorada que um dia furta as joias da patroa, a outra empregada doméstica fiel que perdeu o filho, o garoto de programas, o namorado de ocasião que se desencanta com a parceira quando descobre a mastectomia, o traficante branquinho de bicicleta cara, a alegria da gafieira, as desigualdades do Recife, cujo esgoto da praia dividira o nicho da gente rica do grotão da gente pobre. É um filme sobre Recife, com forte e delicioso sotaque recifense. Sônia Braga, que nasceu em Maringá, no Paraná, passa pelo filme como se sotaque não tivesse. Menos mal. Não forçou a barra.
Aquarius é um filme que aposta na relação do espectador com a teimosia de Clara. Alguns mais pragmáticos acham que é muita teimosia. A valer essa premissa, não haveria o filme. Outros enfatizam uma luta contra a ganância das construtoras e contra a especulação imobiliária. A valer essa premissa a realidade precisaria ser desprezada, e então não haveria vida real. Qual prevalece?
Creio que Aquarius explora duas categorias comportamentais, bem conhecidas da sociologia: a ética da responsabilidade e a ética da convicção. Aquela primeira pesa os prós e contras da ação. Pensa nos resultados. Essa última é unilateral, monotemática, só vê a razão própria e não se interessa pelos resultados. É lutar pelas ideias. E que o mundo pereça. É um jogo no qual todos perdem. Clara é a personificação da ética da convicção.
Em Aquarius, do ponto de vista estético, que é o que mais interessa, ganha o espectador, com uma fotografia extasiante, com uma música nostálgica e aconchegante, com uma coleção de adereços retrô que se esquece que existiram um dia e, principalmente, com o carisma e com a atuação sublime de Sônia Braga.