Deus é mulher, e seu nome é Petúnia, de Teona Strugar Mitevska
Deus é mulher, e seu nome é Petúnia, de Teona Strugar Mitevska
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
No “Futuro de uma Ilusão” Sigmund Freud argumentou que a religiosidade predica em nossa incapacidade para resolver os problemas da vida e para explicar os mistérios que nos circundam. As privações que a vida chamada civilizada nos impõem, e quem compõem uma natureza indomada, explicam nossa agonia para com o destino e nosso desespero em face da morte. A civilização é uma narrativa que acompanha e reflete esse problema central da existência. Freud influenciou os existencialistas franceses. Camus e Sartre enfrentaram esse desespero, que é nosso, e que é civilizacional.
Em “Deus é mulher, e seu nome é Petúnia”, da cineasta Teona Strugar Mitevska, essa equação é destrinchada. A obsessão e a irracionalidade que decorrem dessa ilusão cognitiva (no sentido freudiano) conduzem o roteiro desse filme desconcertante. O tema da irracionalidade da crença foi explorado à luz de seus efeitos perversos em relação à discriminação de gênero, outro tema também incompreensivelmente irracional. O terceiro vértice do triângulo argumentativo é composto por uma situação kafkaniana. Petúnia desconhece objetivamente o teor das acusações que lhe imputavam. Parte do filme passa-se numa delegacia, ainda que contra Petúnia não se tenha uma culpa formada.
A lógica do filme é complexa. O enredo, no entanto, é de cativante simplicidade. Petúnia vive em uma pequena cidade da Macedônia. Mora com os pais. Tem 32 anos e um diploma de historiadora. Desempregada, parece viver um cotidiano entediante. É hostilizada pela mãe, que lhe critica o tempo todo. A mãe é uma tirana. Repudia a obesidade da filha, a aparente falta de graça feminina, enfatizando, também o tempo todo, que a filha é uma fracassada. Essa relação entre mãe e filha segue um arquétipo muito comum, que é recorrente em ambientes patriarcais.
A comunidade realiza anualmente uma festa religiosa, no inverno, quando o padre lança uma cruz na água gelada. Aos homens é imposta a tarefa de mergulharem e buscarem a cruz, como indício de felicidade e prosperidade para o ano vindouro. A cerimônia realiza-se no contexto da Igreja Ortodoxa, dominante na Europa Oriental. Petúnia impetuosamente joga-se no rio e, para espanto e desconforto de todos, consegue pegar a cruz. É o início de seu calvário.
Não se admite que uma mulher realize uma façanha tradicionalmente masculina. O padre quer a condenação de Petúnia, com base em padrões e cânones religiosos, que não consegue explicar. A cineasta retoma a metáfora da caça às bruxas da Igreja Medieval e reproduz a histeria na perseguição de feiticeiras. Visto sobre esse ângulo, o filme explica com riqueza de sutilidades os porquês se queimavam bruxas, e não bruxos. Em algum momento, afirma-se que se Deus fosse mulher, nada daquilo ocorreria. É o que justifica o título do filme.
Petúnia permanece superior, alheia à realidade brutal que a ameaçava, forte na crença de seus direitos e prerrogativas, que se bastam pela própria condição humana. A aparente falta de beleza torna-se uma beleza inspiradora. Petúnia retoma o verso de uma poetisa da época clássica, para quem o que é belo aos olhos é belo e basta; mas o que é bom é subitamente belo. Petúnia, na força de sua convicção, e de inerente bondade, torna-se subitamente bela.
O fato de ser formada em história, e não ter emprego, também é significativo. Para que serviria uma historiadora, parece ser uma questão central que a cineasta propõe ao espectador. Num dos pontos mais sensíveis do filme, dialogando com o chefe da polícia, a respeito de sua formação, Petúnia diz preferir estudar a revolução chinesa do que a história de Alexandre, o Grande. Esse diálogo é emblemático. Alexandre é o herói nacional da Macedônia, e o próprio nome do país ensejou um conflito diplomático com a Grécia, que reivindica Alexandre para o Panteão grego, situando-o topograficamente em Tessalônica, ao norte da república. Subestimando Alexandre em favor de Mao e dos comunistas chineses, Petúnia afirma independência intelectual.
Os homens que fracassaram na busca da cruz, e que perseguiram Petúnia obsessivamente, revelam o que de mais odioso há no machismo. Incapazes de realizar o feito, mentem. Afirmam que Petúnia havia roubado a cruz que não conseguiram pegar. Gritam, esbravejam, xingam, agridem: são personagens que não despertaram do sono de uma imaginária idade média, cheia de obscurantismo, que surpreendentemente parece renascer. O líder deles exibe uma tatuagem no pescoço e uma cabeça raspada, símbolos que muitas vezes se confundem com a estética (sic) neonazista.
Paira sobre o filme também um conflito entre poder civil e poder religioso. O padre insiste em uma condenação, ainda que não apresente objetivamente o delito, a pena, sua dosimetria, suas agravantes e suas atenuantes. O delegado de polícia, que às vezes parece tentar ser mais esclarecido, resiste em desprezar valores de um estado de direito, que pelo menos existe no papel e nas constituições simbólicas. E também simbolicamente as autoridades masculinas ostentam um bigode nefando. Um promotor surge repentinamente para solucionar o caso. É o poder constituído, o dono da última palavra. Irônico, sardônico, chauvinista, misógino, androcêntrico, o promotor faz-nos pensar no poder como garantia e concentração de valores indiscutíveis, mas não universais. Por isso, exigem uma permanente crítica.
Petúnia é um símbolo de bruxas perseguidas pelo simples fato da fidelidade para com as próprias ideias, gostem ou não, pais, mães, maridos, filhos, padres, professores, amigos, e quem quer seja. Há outras personagens também cativantes no filme, que vivem dramas próprios, a exemplo da repórter da televisão. Nesse ponto, a cineasta lembra que as narrativas são ditadas pelos que detém o poder. Os donos da televisão não querem divulgar o caso.
A partir do simbolismo de uma festa religiosa, a jovem diretora Teona Strugar Mitevska (que nasceu na antiga Ioguslávia, em 1974), extrai um enredo revelador das perversidades que se escondem no manto das falsas santidades. Não é por acaso que a fábula do lobo e do carneiro é referida várias vezes no filme, sempre sobre perspectivas distintas. Petúnia é a resistência a todas as formas de ilusão, simplesmente porque a desigualdade de gênero não é uma condição dada pela natureza, não passa de uma construção cultural, que pode (e deve) se desconstruída. Petúnia alcançou a cruz no rio gelado. Basta.