Vida Invisível, de Karim Ainouz
Vida Invisível, de Karim Ainouz
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Duas irmãs. Uma em Atenas. A outra, em Viena. As duas, no entanto, no Rio de Janeiro. Dificuldade no encontro, como se em Atenas e se em Viena estivessem, porque em Viena e em Atenas reciprocamente acreditavam que a outra estava. O pai é um tirano. Porém, para os tiranos (inclusive para os tiranos de armário), a tirania tem razões que a própria razão desconhece. O triângulo é a figura mais simples da geometria, e também representa com simplicidade alguns dos dilemas da vida. Em “Vida Invisível”, de Karim Ainouz, o vértice da narrativa é o orgulho ferido do pai traído. As arestas, uma filha que não abria mão da liberdade e a outra que não tirava as mãos do piano. Em um dos casos, literalmente.
“Vida Invisível” sugere três análises. O filme propriamente dito, as tensões da vida levadas para a tela, e o enredo. Comecemos por esse último. O fio condutor é um conhecido topói dos argumentos literários: o tema da carta perdida. No cinema comercial estrangeiro está em “Minha Amada Imortal”, como sugestão de um amor impossível vivido por Beethoven. Pura lenda. No cinema nacional está em “Central do Brasil”, como sugestão das limitações de quem não pode ir à escola. Verdade pura. Na literatura universal troca de cartas (ainda que lidas) estão em “Ligações Perigosas”, de Choderlos de Laclos ou em “Julia, ou a Nova Heloísa”, de Rousseau, talvez o livro mais vendido no século XVIII. Há também cartas misteriosas (escondidas), como se lê no eletrizante conto policial de Edgar Allan Poe.
Uma análise mais acurada do argumento exigiria o conhecimento do livro no qual o filme se baseia, de Martha Batalha, que não li. Corre-se o risco do velho dilema do “O que é isso companheiro” ter-se tornado “Não é nada disso companheiro”, ou de “Elite da Tropa” ter se tornado “Tropa de Elite”. Do filme para o livro ou do livro para o filme, não são caminhos que guardam distâncias e rotas simétricas. De qualquer modo, em “Vida Invisível” há temas superficiais, e temas de maior profundidade.
Além do tópico da carta não entregue, há também o assunto da inversão da estrutura da parábola do filho pródigo (Lucas, 15). Na passagem bíblica o filho desviante é recebido com júbilo pelo pai, para o ódio do irmão dedicado. Em “Vida Invisível” a filha desviante é recebida com aversão pelo pai, para o posterior ódio da irmã amorosa. No último caso, a mãe é cúmplice da violência paterna; é a sombra do pai, diz a filha tornada espúria.
Entre os temas paralelos, a agonia do talento artístico reprimido; obstruía-se, de todas as formas, a carreira da irmã pianista. E porque é um filme de época (décadas de 1940 e 1950) também necessária uma reflexão do papel do piano nas casas das famílias que tentavam se afirmar como não proletárias. O piano era um símbolo de uma ascensão social que se iniciava. O meu avô, pequeno comerciante em uma pequena cidade do interior de um pequeno estado, orgulhava-se, na década de 1950, do piano dado à filha, Leila, que exibia seus talentos para visitantes e parentes. O piano na pequena casa de Eurídice e de Guida (os nomes das irmãs) invoca essa simbologia do piano termômetro que limitava o proletário do aspirante a pequeno empresário.
Quanto ao filme, são duas horas e vinte minutos, o que nos tempos do cólera existencial contra o relógio em que vivemos, é um pouco mais do esperado. Lucram os estacionamentos de shopping centers, porque “Vida Invisível” frequenta as salas comerciais desses cinemas pequenos e modernos que vendam pipocas a preço de ouro. O filme demora para engatar. Tem-se a impressão que diretor e roteirista rodam inicialmente com o freio de mão puxado, porque o filme demora a deslanchar.
A fotografia agrada a retina. Os registros iconográficos de época revelam honestidade na pesquisa. Uma personagem (Antenor, casado com Eurídice) joga bilboquê. Ouve-se novela no rádio (talvez aquela na qual Veridiana aproxima-se do amado no piano de cauda). Escuta-se a narrativa de um jogo de futebol (e talvez um ouvido atento alcançaria Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando e Nilton Santos, Zito e Didi, Garrincha, Pelé, Vavá e Zagallo). Todos fumam, o tempo todo, e parece que fumam o cigarro da época. O professor de piano, que também fuma o tempo todo, é magro, muito magro, exatamente como fumantes são magros. Éramos mais magros naqueles tempos. Consulte as fotografias da família.
Eurídice escova os dentes com uma Kolynos azul, que creio vi na infância. Mas Eurídice não toca o piano. As cenas do piano (o que é comum) são montadas. Tem-se um piano de armário, muito simples, porém o som lembra um piano mais sofisticado, presumo um piano acústico de cauda ou um elétrico de última geração. Eurídice estuda com peças elaboradas, em um tempo no qual se tocava o manual de Leila Fletcher. Devia ser muito adiantada, sonhava em tocar num conservatório na Áustria.
O tamanco do português (pai das meninas) é exatamente como se espera, ainda que a cena dure fragmento de segundo. Antenor aparece de cueca samba-canção e de camiseta sem manga, que foi adereço simbólico do estivador explorado. Mais na parte final do filme, tem-se um fragmento também do otimismo de JK, e do pessimismo carioca, que predicava na perda do status de velhacap.
Quanto às tensões levadas para a tela, “Vida Invisível” toca fortemente no machismo, na indiferença, na inserção social da mulher, no cerceamento sistemático e recorrente de planos existenciais femininos, bem como no sexo enquanto manifestação ostensiva de violência e de poder. Algumas cenas grotescas exemplificam essa última tensão. Quem assiste o filme tem que ter estômago.
Guida é ousada, e por vezes ingênua; acreditou num marinheiro grego, com quem partiu para Atenas. Pagou caro pela ousadia e pelo sonho. Eurídice é contemporizadora, ainda que cordata por fora, mas colérica por dentro. O pai é o intransigente, a mãe é conivente com a intransigência, Antenor é o tiraninho, porém mais monstruoso do que todos os Mefistófeles que pode haver. Há ainda uma personagem cativante e aliciante: Dona Filô. E uma surpresa coadjuvante no fim do filme, para quem chorou em “Central do Brasil”. Vai chorar de novo.
“Vida Invisível” é, do ponto de vista ético, um filme denúncia sobre a opressão feminina. É um filme que a nós homens faz pensar que participamos desse genocídio de gênero, porque somos histórica e presentemente responsáveis, pelo que fizemos e fazemos, e pelo que não fizemos e não fazemos. “Vida Invisível” é, do ponto de vista estético, um delicioso filme de época que pode ser assistido com um vestido preto com bolinhas brancas ou com o cabelo engomado de gumex, degustado com uma deliciosa balinha, sem peso na consciência. O que pesa na consciência é que convivemos com tudo isso, e que, contra tudo isso, muito pouco fazemos. Ainda que melodramático, “Vida Invisível” é um filme militante. Faz chorar. E dá vontade de a vida mudar.