Dois Papas, de Fernando Meirelles

Dois Papas, de Fernando Meirelles

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Habemus Papam. O escritor australiano Morris West (1916-1999) encantou interessados em assuntos canônicos com dois deliciosos livros do início da década de 1960. “As sandálias do pescador” narrava a história da escolha de um primeiro papa não italiano, em 400 anos. “O advogado do diabo” (não confundir com o filme estrelado por Al Pacino) contava a trajetória da escolha de um santo.

O processo de canonização é acompanhado por um religioso cuja missão é descobrir os erros, faltas e obscenidades do candidato ao hagiógrafo (santo). Nesse impressionante livro, o advogado do diabo (é essa a expressão que designa o investigador) que no livro de West sofre de um câncer, descobre, no sul da Itália, fatos desabonadores do candidato que se quer santificar. Reconhece a importância da indicação, porém vive um profundo problema de consciência, justamente porque resolve encobrir a história. Assume o risco. Literatura, que a história poderia copiar.

A junção desses dois enredos, acrescida de uma fotografia impressionante, resulta em “Dois Papas”, de Fernando Meirelles. A eleição e o ocaso do Papa Bento XVI e a transição para o Papa Francisco dão o pano de fundo desse enredo previsível. Dogmático, intelectualizado (debateu com Habermas), conservador, litúrgico, Bento XVI (protagonizado por Anthony Hopkins, que nos lembra “Vestígios de um Dia”) parece desconfortável com a missão. No meio de denúncias contra a Cúria (o caso do Banco do Vaticano e o sempre caso dos assédios pedófilos) Bento XVI busca um precedente medieval e renúncia ao trono de Pedro. Bento XVI é a síntese de uma Igreja cheia de dogmas e vazia de fieis.

Por outro lado, populista, bem-humorado (é um aficionado do futebol), progressista, iconoclasta, Francisco (protagonizado por Jonathan Price, que assistimos em “A Esposa”) é epítome de uma Igreja vazia de liturgia, porém forte em energia, em favor dos mais necessitados. Há um ponto obscuro, porém. Chegaremos lá.

O distanciamento e a aproximação entre Bento XVI e Francisco desmistificam o comportamento canônico que se espera dos chefes da Igreja. Nos diálogos há Josef Ratzinger e Jorge Bergoglio, duas pessoas comuns, cheias de dúvidas, de culpas, de medos. Um alemão e um argentino, que juntos assistem a final da Copa do Mundo, que dançam um tango e que conversam amenidades teológicas. Os papas foram humanizados, contam piadas, ainda que rindo de santos e de hereges.

Há um tema político. O autor da trama (Anthony McCarteen) e o diretor (Fernando Meirelles) passam por cima das imputações do nazismo feitas a Ratzinger (há apenas uma cena invocando o problema), porém vão mais a fundo nas suspeitas das relações entre Bergoglio e a ditadura argentina. Há uma sequência relativamente longa em torno desse espinhoso assunto. Essa tensão é o ponto mais forte do filme.

Bento XVI comunica a Bergoglio sua intenção de renunciar, supostamente em favor de uma reforma da Igreja, que acreditava que o argentino realizaria, ainda que discordasse de todos os pontos de uma nova agenda. Bergoglio confessa que os dados que a Igreja conhecia sobre seu passado eram insuficientes. Não esclareciam as relações que tivera com os militares da ditadura, o que lhe causou muitos problemas com setores progressistas argentinos.

Nesse ponto, o roteiro segue para o tema da culpa, da confissão e da superação das feridas. Percebe-se que Bergoglio transcende ao seu roteiro de vida, conseguiu curar as feridas, à custa de muito sacrifício e disciplina. Comprova-nos que se pode perdoar, mas que não se consegue esquecer. Há uma sequência melodramática que nos lembra os “marcelinos-pao-e-vinho” e os “cinemas-paradiso” que sempre algum dia assistimos. A cena da chamada de Bergoglio para o sacerdócio é açúcar com adoçante, melado maior não há: puxa as lágrimas de qualquer ateu.

O dissenso entre Bento XVI e Francisco é indício de uma dicotomia que toma conta do mundo no qual vivemos. A tensão entre o conservadorismo erudito e o progressismo mais popular é um sintoma de uma nova guerra fria que se espalha pelo mundo, e que é compreensível e que merece estudo e ação. O problema está no conservadorismo obscurantista. A ascensão de Francisco ao trono de Pedro (a quem Jesus vaticinou que ergueria sua Igreja) é indício de que forças progressistas ainda encontram algum espaço, mesmo que marcadas por um passado que sugere erros, hesitações e culpas.

Em “Dois Papas”, de fato, a história imita a literatura, e não o contrário. O filme é ficção, e é documentário. Metaforicamente, a crise que o advogado do diabo viveu quando decidiu não relatar o que sabia do pretendente a santo assemelha-se, de algum modo, à aceitação que houve, por parte da Cúria e da opinião pública, em favor de Bergoglio, tornado Francisco. O santo de Morris West era um santo necessário. Francisco, nesse mundo atribulado, é por sua vez um Papa também necessário. No dia de sua escolha os fatos que predicam a história justificam a fumaça branca na praça de São Pedro: Habemus Papam.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 13/12/2019
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