Resenha do filme "Hoje eu quero voltar sozinho"

Resenha de filme:

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho

O filme Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), dirigido por Daniel Ribeiro , conta a história de Leonardo (Ghilherme Lobo), um adolescente que, além das questões comuns à sua idade, como o primeiro beijo, amizades e sexualidade, é cego. Desejando ser mais independente, precisa lidar com suas limitações, seus conflitos internos e a superproteção de seus pais. Esta resenha pretende lançar um olhar sobre a questão da deficiência visual e como ela é abordada ao longo da narrativa.

Leonardo mora com seus pais e frequenta uma escola regular, que possui adaptações para que ele possa participar das aulas normalmente. Utiliza uma máquina de escrever em braile, além de material didático também escrito em braile. Segundo Veiga-Neto (2001), em “Incluir para excluir”, a escola é a responsável pela articulação entre a razão e as práticas, local onde é possível observar as transformações sociais. A inclusão de Leonardo em uma escola regular é a concretização de mudanças sociais, de cunho histórico e não natural, e prova como as possibilidades de mudança, mesmo que lentas e graduais, estão em nossas próprias mãos. Veiga-Neto diz ainda, citando Foucault, que a inclusão escolar de um estudante anormal, representa não uma grande revolução, mas pequenas revoltas diárias.

Na escola, Leonardo conta ainda com a ajuda de sua amiga Giovana (Tess Amorim), tão superprotetora quanto sua família.

A vida de Leonardo começa a mudar quando um novo aluno entra na escola. Gabriel (Fabio Audi), se aproxima de Leonardo, que acaba experienciando novas situações e sensações. Ao mesmo tempo em que tentava se desvencilhar do tratamento diferenciado e excludente que recebia de todos a sua volta, Gabriel o tratava como igual, explorando os outros sentidos de Leonardo. Enquanto Giovana nunca havia ido ao cinema com ele, Gabriel o levou e narrou o filme. Enquanto seus pais o proibiam de sair à noite por ser muito escuro (“para mim é sempre escuro”, respondeu Leonardo), Gabriel o convidou para ver um eclipse durante a madrugada e, sentados no gramado, explicou com pequenas pedras o funcionamento do fenômeno.

Assim, o protagonista ia criando independência e acumulando experiências.

Leonardo deseja encerrar um vínculo de dependência que se estende de sua família a sua amiga Giovana, responsável por levá-lo para casa, abrir portas e desvia de seu caminho todos os dias para cumprir seu papel, como uma obrigação.

A mãe de Leonardo evita que ele fique sozinho em casa, avisa quando uma bebida está quente, como se ele não possuísse a capacidade de sentir com o tato a temperatura da xícara que lhe é servida. Não andar sozinho pelas ruas, sempre ligar ao menor sinal de atraso, o conflito para conseguir que seus pais o autorizassem a viajar ao acampamento da escola, o desejo de fazer um intercâmbio, possibilidade ridicularizada por sua mãe: são muitas as cenas em que vemos que a família o considera como incapaz, inválido, inapto para atividades não relacionadas à sua deficiência visual. Em determinada cena do filme, Giovana, que além de amiga de Leonardo é também pessoa de confiança de sua família, é chamada de “muleta humana”, representando como era vista pelos colegas de escola e também, consequentemente, a imagem de dependência associada a Leonardo.

Amita Dhanda analisou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), grande contribuição na alteração do âmbito de assistência para o de direitos. Em “Construindo um novo léxico dos direitos humanos: convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência” (2008), Dhanda demonstra como a CDPD reconhece o direito à vida das pessoas com deficiência em pé de igualdade a todos os seres humanos, assimilando a deficiência como parte da riqueza e diversidade humana e conferindo a essas pessoas o poder de gerir os próprios assuntos, com interdependência, pois capacidade, autonomia e apoio devem coexistir simultaneamente. Ou seja, a família e amigos, representados pelos pais de Leonardo e Giovana, deveriam sim dar o suporte necessário para uma plena participação social do protagonista, entretanto sem retirar dele o direito de gerir a própria vida e sem a nulidade de suas capacidades motoras e funcionalidade de seus outros sentidos: tato, olfato e audição. Leonardo, portanto, não precisava de uma “muleta humana”, mas sim de uma parceria apenas para lidar com possíveis dificuldades relativas à alçada da deficiência visual.

Leonardo sente essa necessidade de romper com a dependência de sua mãe, mostrar que pode ter uma vida normal e gerir sua própria existência, sem que a mãe o tutele constantemente, pois a deficiência visual não é um atestado de sua incapacidade de lidar com os obstáculos, objetivos e subjetivos, que a vida proporciona. A normalidade da vida nos leva a questionar esse processo de padronização social e classificação humana. Para Miskolci (2003), ninguém está livre de sua parcela de anormalidade, apesar de a ideia de buscar o padrão, a média, a normalização, ainda estar vigente, desde o século XVIII, ideia construída historicamente em um longo, e complicado, processo constituído pela sociedade burguesa. Para Leonardo, ser um adolescente normal é ter suas diferenças respeitadas, assim como todos os colegas, que também possuem suas particularidades e desvios dessa linha média imaginária, e viver a adolescência.

O filme possui conflitos interligados entre a deficiência visual e a descoberta da sexualidade, mas nos interessa aqui a questão de como Leonardo pode ser autônomo diante de um universo que o considera incapaz de gerir sua própria existência ou que o ridiculariza e/ou se aproveita de sua limitação sensorial. No filme, apenas um grupo pequeno de estudantes representa esse papel, mas sabemos que parte da sociedade ainda compactua com casos de preconceito e depreciação e não apenas em ambiente escolar. Para Veiga-Neto (2001) o caso pode ser entendido como racismo, se entendermos o racismo não apenas através da rejeição pela diferença, mas também por uma obsessão pela diferença, como uma contaminação, um abalo em uma estrutura que supõe-se perfeita.

Enquanto conhece melhor o novo amigo, Gabriel (Fabio Audi), Leonardo não precisa de estímulos ligados à visão para despertar seu interesse. Audição, olfato e tato são funcionais e plenamente capazes de gerar novas sensações e percepções em nosso protagonista.

Referências

DHANDA, Amita. Construindo um novo léxico dos Direitos Humanos: Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Sur-Revista Internacional de Direitos Humanos, ano 5, número 8. São Paulo, 2008.

HOJE eu quero voltar sozinho. Direção: Daniel Ribeiro. São Paulo: Lacuna Filmes, 2017. (96 min).

MISKOLCI, Richard. Reflexões sobre normalidade e desvio social. Estudos de Sociologia, v. 7, n. 13/14, p. 109-125, 2003.

VEIGA-NETO, Alfredo. Incluir para excluir. In: LAROSSA, J.; SKLIAR, C. (orgs) Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p.105-118.

Carolina Ragassi
Enviado por Carolina Ragassi em 02/11/2019
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