Desejos ocultos na ‘Cidade dos Sonhos’: o cinema de David Lynch, o surrealismo e o valor da força da imaginação


images?q=tbn:ANd9GcSc9v81QCBLPSiiMh39EXrCL57vubkxV0JzyeAXg0ez_Nxa0tF9Qg


Por Ivonaldo Leite 

Mundo silencioso
O alto mar não se move
Parece o silêncio de um túmulo
Ninguém está acordado
O tempo passa lento
Calmaria total

No entanto, é nobre acreditar
Que as pessoas podem ter esperança
Através das chamas eu vejo
Um barco escuro que devaneia de esperança
Uma chuva pela manhã
Causando calmas ondulações
E um ataque de gaivota
Aquela que invade a calmaria
(Sigur Rós, Dauðalogn)

Jacques Lacan dizia que, não poucas vezes, os sonhos são uma metáfora do desejo. Daquilo que não foi satisfeito e que vem a se manifestar no que é sonhado ou no modo como se fala do que se sonha. Para quem tem um certo treino nos “jogos do espírito”, é altamente improvável assistir Mulholland Drive (traduzido no Brasil como ‘Cidade dos Sonhos’), do diretor e roteirista surrealista David Lynch, e não lembrar da afirmação lacaniana, assim como não constatar que, após cerca de um século da sua vinda a lume, a perspectiva surrealista continua dando expressão à outra forma de observar o mundo e estar nele.
Lançado em 2001, o filme de Lynch é daqueles que, seja em que sentido for, não deixa ninguém indiferente. Ainda mais depois de o ranking elaborado pela inglesa BBC, com uma lista de 100 títulos e ouvindo 177 críticos de todo o mundo, tê-lo apontado como o melhor filme destas duas primeiras décadas do século XXI. Não são poucos, contudo, os relatos de quem o assistiu, mas nada entendeu, e voltou a assisti-lo novamente. Em linhas gerais, talvez, uma possível sinopse de Mulholland Drive pode ser apresentada da seguinte forma: Betty (Naomi Watts) chega a Los Angeles disposta a triunfar no cinema e se instala na casa de sua tia. Aí encontra a enigmática Rita (Laura Elena Harring), que se tem escondido na casa após sofrer um acidente automobilístico que a deixou amnésica. Ela só lembra de um nome: Diane. Betty e Rita começam então uma investigação para descobrir quem é Diane, e esta busca as aproximam de um modo tal que resulta em um envolvimento emocional. Rita começa a repetir em voz alta, em estado sonâmbulo, a palavra ‘silêncio’. Quando desperta, pede a Betty que a acompanhe ao ‘Club do Silêncio’, onde se realiza um misterioso espetáculo, durante o qual Betty descobre em seu bolso uma caixa azul. De volta à residência, Betty desaparece da cena e Rita abre a caixa azul. A partir daí, é iniciada a segunda parte do filme, em que Betty se converte em Diane, tendo obsessão por Camila (antes Rita), uma mescla de melodrama e tragédia no qual se narra o ‘inferno pessoal’ de Betty.
O que se passa é que, em ampla porção do tempo (a primeira parte), o filme é um sonho. A abertura da caixa azul é o ponto divisor entre a primeira e a segunda parte. Em uma, assiste-se o progresso de Betty na indústria do cinema; na outra, a destruição da personagem de Diane pelo sistema de Hollywood. A mulher é múltipla em Mulholland Drive, como, de resto, em toda a filmografia de Lynch. Ele joga com arquétipos. Na primeira parte do filme, por exemplo, o magnetismo sexual de Rita existe em potência, mantendo-se em estado atenuado pela amnésia; porém, na segunda parte, já com ela sendo Camila, o magnetismo se manifesta intensamente.
De notar, também, uma espécie de aula sobre o cinema dentro cinema, ademais de uma aguda crítica ao modo hollywoodiano de conceber a sétima arte. No ‘Clube do Silêncio’ de Mulholland Drive, somos lembrados que não há banda, não há orquestra e que tudo é uma gravação, como ato para fazer-nos submergir no mundo imaginário do cinema e lançar-nos sem medo no universo das emoções.
Ao final, com a última palavra pronunciada no filme, Lynch parece querer nos fazer um convite. O modo como essa palavra anuncia que a gravação terminou é bastante indicativo disso: ‘silencio’. É como se fosse um chamado a pensar no que acabamos de ver, estimulando o espectador a refletir sobre as emoções que o filme despertou, para desenvolver a capacidade de análise sobre o cinema e a própria vida. De forma conotativa, esse ‘silencio’ soa, conforme dito em recensões sobre o filme em espanhol, como uma palavra que nos reconforta tal qual un beso de buenas noches ou um carinho antes de dormir. E sonhar.
Do princípio ao fim, portanto, David Lynch afirma a sua perspectiva surrealista. Transcender o aparente do que está estabelecido, o suposto real, sob a força condutora da imaginação. Trata-se da continuidade da fascinante aventura intelectual e afetiva iniciada nos anos 1920 em Paris, afinal, como disse André Breton no Primeiro Manifesto Surrealista, os olhos nunca estão abertos quando se limitam ao papel passivo de espelho.