Pantera Negra , parte 1 do ensaio: Pantera Negra & Tigre e o Dragão - EUA e China através de heróis
Pantera Negra & Tigre e o Dragão - EUA e China através de heróis
Parte 1 - Pantera Negra
Uma frota de carros robustos é vista andando no meio da floresta. Dentro de um deles jovens aflitas temem por suas vidas, elas são alvo de tráfico humano. Escutam um barulho e um solavanco, os carros param. Uma delas tenta acalmar as outras, medo não ajuda. Do alto de um avião um jovem vestido de roupas tradicionais de seu país (Wakanda) conversa com a capitã. É o príncipe T’Challa. Ele se veste como uma pantera negra e salta no meio da frota dos bandidos. Protegido por seu traje à prova de balas, por sua agilidade, força e perícia derrota os bandidos e liberta as cativas. Uma delas, Nakia, fica brava. Ela se deixou capturar para investigar os criminosos. O príncipe T’Chala e a espiã Nakia já tiveram um caso e o seu encontro tem uma tensão. Por um lado há atração mútua. Por outro, eles têm divergências políticas.
Há muitos anos, nos guetos violentos dos EUA, jovens conversam com armas em mãos. Ouvem um barulho e escondem as metralhadoras. Temem a polícia, entretanto quem bate a porta são duas mulheres com lanças em mãos. Deixe-as entrar, fala o líder. Se elas o quiserem morto resistir é inútil. Após uma breve conversa o Pantera Negra de então (pai do herói do nosso filme) entra. Ficamos sabendo que os dois moradores do gueto não são criminosos comuns. São idealistas em busca de uma revolução mundial que libertaria os irmãos negros da opressão branca. Um deles é irmão do rei (ou seja, tio do nosso herói, T’Challa). Além de irmão é um insubordinado, desobedeceu ordem expressa de não se envolver em assuntos estrangeiros. Em um confronto tenso o rei acaba matando seu irmão e volta para Wakanda - sem se preocupar com seu sobrinho, abandonado órfão em um gueto dos EUA.
No começo do filme temos a apresentação de dois conflitos que se mantém em suspense. Um roteiro complexo. A jornada do herói tem duas faces: o enfrentamento de uma ameaça a seu mundo, externamente ele enfrenta adversários terríveis e os vence. Internamente o herói passa por uma jornada dura, apenas vencendo seus próprios conflitos internos ele amadurece: vira outra pessoa. Tony Stark deixa de ser o mesquinho vendedor de armas de guerra para se tornar o fornecedor de energia limpa. O Homem de Ferro deixa de ser o responsável (indiretamente) pela morte causada por suas armas e passa a lutar pela defesa dos outros - inclusive se envolvendo em filantropia e fornecimento de energia limpa. Peter Parker inicialmente estava preocupado em resolver sua vida financeira. Após a morte do tio se torna o Homem Aranha, “Com grandes poderes vem grande responsabilidade.” Em cada um destes filmes os primeiros minutos do filme mostram o mundo em que a personagem vive. Em seguida um evento disruptivo (o ‘chamado para a aventura’ de Joseph Campbell) tira a personagem do mundo em que ela nasceu. O enfrentamento de um grande desafio irá transformar (externamente) o mundo em que viveu e (internamente) a própria personagem. Só é necessário um chamado para a aventura. Por que ‘A Pantera Negra’ mostra inicia mostrando dois ambientes?
O terrível Ulysses Klaue representa os brancos que vivem em função de explorar as riquezas naturais dos africanos. Kawanda, entretanto, é forte demais para ele. De modo que organiza um assalto a um museu inglês. Uma de suas peças é feita de Vibranium, um metal que é a fonte do poder de Wakanda. Ulysses - como é de se esperar - eventualmente é derrotado. Mas não foi pelo Pantera Negra! Foi derrotado pelo Killmonger, um negro que vivia como lacaio de Ulysses. O conflito, tal qual havia se desenhado até então, era de um povo negro, personificado por seu rei, se defendendo de um ataque de um branco explorador das riquezas nacionais. O povo Wakanda estava dividido. Uma parte defendia o isolacionismo (é a posição de T’Challa, nosso herói). Uma parte defendia se engajar na política externa. A morte de Ulysses é um ponto de virada. Mas quem é este personagem misterioso que o derrota?
Agora se torna claro o motivo de termos, no começo do filme, dois cenários. O segundo (o gueto dos EUA) é o mundo comum de Killmonger. Seu pai foi assassinado pelo Pantera Negra da época (o pai do atual Pantera Negra) e ele foi abandonado órfão numa periferia perigosa. O pai de Ulysses foi morto por desobedecer seu rei, foi morto por querer se envolver em uma guerra para libertar os negros do mundo! Ulysses Klaue representa a parte do povo de Wakanda que deseja romper o isolacionismo através da violência: a intervenção militar é a maneira de libertar os irmão negros que vivem a exploração branca ao redor do mundo. Quando assisti o filme uma comparação me veio logo à mente. Killmonger vive em um mundo duro e violento, mas não é passivo, não se entrega. Ao invés dedica a sua vida a se aperfeiçoar como máquina de guerra (servia como agente desestabilizador do governo dos EUA). Sua resistência e vontade de reverter a sociedade, mesmo que pela via armada, me lembrou os Panteras Negras. Em contraposição T’Challa (o herói do filme) simbolizaria o movimento pacifista de Martin Luther King. Percebo agora que este simbolismo, que também está no vídeo “Black Panther: Symbolism Explained”, é uma tremenda injustiça.
Primeiro, colocar os Pantheras Negras como vilões é uma injustiça. Eles foram um movimento de resistência legítimo. Sou pacifista e não concordo com o uso de violência, prática que eles fizeram como retaliação quando Matin Luther King foi assassinado. Entretanto eles mais resistiam e organizavam do que eram proativos na violência. Ou seja, os vejo como mocinhos - ainda que imperfeitos. Segundo, colocar T’Challa como um símbolo de Matin Luther King é uma injustiça com Martin! O famoso pastor era um pacifista e T’Challa usa a violência recorrentemente!
Para mim o simbolismo mais adequado é o seguinte: T’Challa, o Pantera Negra, princípe herdeiro, representa um Estado ideologicamente dividido em três correntes. A primeira é a posição de seu falecido pai: Wakanda está segura se mantendo isolada dos conflitos externos. A segunda posição é a de Killmonger: o mundo é violento e o Estado deve responder da mesma maneira. É uma questão de tempo até que Wakanda seja atacada por algum país em busca de suas riquezas naturais. Além disso o isolacionismo é ser conivente com a maneira com que os negros são explorados pelo mundo. A terceira posição é representada pela espiã Nakia. Ela é uma humanista, recusa ver os horrores do mundo sem se pronunciar. Mas sua posição não é a da violência. Se alguém deve ser comparada a Martin esta é Nakia.
Wakanda e os EUA
Pantera Negra é um filme bem feito em muitos aspectos. O vilão tem uma motivação que o torna crível e que nos permite nos sensibilizar com sua história. As batalhas são travadas por personagens com personalidade (odeio aqueles exércitos de monstros idênticos uns aos outros usados em filmes como Liga da Justiça). As personagens femininas têm opinião, vão muito além de seus corpos. O filme foi dirigido, escrito e protagonizado por negros. Creio que todo seu simbolismo foi pensado para tratar questões de raça, gênero e colonialismo. Entretanto a semelhança com os EUA em um momento crucial de sua história permite a comparação entre o país fictício, Wakanda, e a maior potência à época da Segunda Guerra: os EUA.
A Doutrina Monroe, de 1823, famosa pela frase “A América para os americanos.” exigia a não criação de novas colônias europeias no continente americano. Em troca os EUA não se envolveriam em guerras na Europa. Na Segunda Guerra o país, tal qual Wakanda, ficou dividido entre se manter isolada ou não. A decisão por participar da guerra só se deu após o ataque japonês a Pearl Harbor. Ao cabo da segunda guerra os EUA tiveram a percepção de que a Segunda Guerra ocorreu devido à política inclemente que se deu contra as potências que perderam a Primeira Guerra. Decididos a não cometerem os mesmos erros os EUA passam a se envolver na política externa em termos amigáveis. Ajudou as potências devastadas pelas guerras (tanto as vitoriosas como as derrotadas) através do Plano Marshall, ajudou à criação de organizações internacionais como a ONU, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
Wakanda vê o mundo em conflito, especialmente pela exploração dos negros pelos brancos. Após um evento dramático (a tomada do poder pelo Killmonger) decidem entrar em guerra contra o mundo opressor. A batalha se dá em uma guerra civil. Os vencedores se abrem para o mundo, suas contribuições são humanitárias e assistência técnica.
Os EUA viam o mundo em conflito, especialmente pela ascendência da potência que explorava os diferentes (a Alemanha). Após um evento dramático (o ataque a Pearl Harbor) decidem entrar em guerra contra a potência opressora. A batalha se dá contra os países do Eixo. Os vencedores se abrem para o mundo, suas contribuições são humanitárias e assistência técnica.
Ryan Coongler (diretor e co-roteirista) faz um excelente trabalho tratando de questões negligenciadas em demais filmes de herói, especialmente o racismo. Inconscientemente trouxe elementos constitutivos da visão que os EUA tem de si. Tal visão é trazida frequentemente pelos filmes da Marvell - assunto que tratarei na conclusão desta trilogia de ensaios. Mas, sem dúvida, Pantera Negra é o que faz isto com mais similaridade.