À Procura da Felicidade – Um Caso de Narcisismo
A indústria cinematográfica da nação economicamente mais poderosa do planeta, mais uma vez, proclama a pretensa superioridade do american way of life. Afinal, na maravilhosa América, onde todos têm sua chance, até mesmo um sem-teto pode tornar-se um milionário, mesmo sem curso superior, mesmo sem renda fixa, mesmo com filhos e sem saber o que fazer para suprir as necessidades mais básicas!
Se você não suporta patriotadas ou histórias previsíveis, saiba que À Procura da Felicidade disfarça muito bem o orgulho nacionalista e o enredo previsível é suplantado pela força dramática com que o diretor italiano, Gabriele Muccino (No Limite das Emoções, O Último Beijo), soube temperar cada passagem. O resultado é um trabalho envolvente, capaz de prender a atenção e emocionar sem ser piegas, fazendo valer as duas horas que você precisará gastar para assistí-lo.
Na San Francisco da década de 1980, o vendedor Chris Gardner (Will Smith) faz um investimento em máquinas de scanners ósseo (um substituto do raio-x) e se depara com dificuldades para repassar o produto, freqüentemente considerado caro e desnecessário. Enquanto persiste na busca por compradores, Gardner vê sua situação financeira piorar cada vez mais. É nesse momento que se depara com um corretor de bolsa de valores e decide tentar a carreira e uma nova vida, enquanto sua esposa, já não suportando a situação de penúrias e sacrifícios, termina por abandoná-lo.
Gardner assume a responsabilidade de cuidar do filho (interpretado por Jaden Christopher Syre Smith, filho de Will Smith na vida real) mas a sorte continua de costas viradas para ele, que é despejado de casa por não pagar o aluguel, perseguido por não pagar o importo de renda, preso por não pagar as multas de trânsito e, como se não bastasse, ainda é informado de que a sonhada carreira de corretor depende de um estágio não remunerado de seis meses e de mais uma avaliação final. O mar de infortúnios parece não ter fim e são muitas as exigências a serem cumpridas por alguém que nem mesmo tem um teto para abrigar o próprio filho, com quem passa as noites em abrigos para mendigos, bancos de metrô ou qualquer lugar onde seja possível dormir! Mesmo assim Gardner mantém as esperanças e abraça a oportunidade proporcionada pelo estágio, ao mesmo tempo em que continua tentando vender seus scanners para ter o que comer.
A avalanche de acontecimentos ruins na vida do pobre protagonista é sufocante e não há como não encontrar identificação com aqueles apuros a que todos estamos sujeitos a passar em qualquer tempo. Neste mundo de incertezas ninguém sabe quando estará com a corda no pescoço e a insegurança termina por formar sociedades mais egoístas, menos solidárias. Em cidades tão grandes e prósperas como San Francisco, ou tantas outras, muitas vezes há pessoas, com quem convivemos diariamente, passando por grandes dificuldades sem que nem mesmos percebamos, tão ocupados estamos com nossas próprias mazelas. É o que acontece com Gardner, que passa a conviver com pessoas de ótima situação financeira enquanto ele e seu filho comem o pão que o diabo amassou.
A história, bem conhecida no universos dos administradores, é baseada no livro auto-biográfico The Pursuit of Happyness, escrito pelo próprio Chris Gardner (sim, o verdadeiro Gardner, pois trata-se de uma história real) e adaptada para o cinema pelo roteirista Steven Conrad, que cuidou de delimitar os acontecimento de forma a apresentar o personagem como um super-pai, disposto a qualquer auto-sacrifício para dar uma vida melhor ao seu rebento. Na realidade Gardner não seria exatamente uma perfeição já que consta não ter sido fiel à primeira esposa e mesmo ter chegado a surrar a segunda. Mas esses são detalhes que, se por um lado denunciam uma certa hipocrisia da produção, não chegam a comprometer o resultado final de trabalho de Gabriele Muccino (que surpreende pela eficácia e dosagem exata da carga emocional) ou mesmo de Will Smith que chegou a alcançar a indicação ao Oscar. O ator subiu a um outro patamar entre os astros de Hollywood e passou a ser encarado com mais seriedade, já que até então só havia interpretado personagens de aventuras descartáveis. Sua cumplicidade com o filho Jaden rende bons frutos para o filme, pois ambos estão muito bem. Mesmo sem chegar a roubar a cena totalmente, o pequeno emociona e mostra que tem carisma e talento.
Apesar de óbvio, é importante ressaltar que histórias como a de Chris Gardner são exceções. Não é verdade que basta ter bom caráter, perseverança e senso de oportunidade para ser bem sucedido nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Também é preciso ter sorte, muita sorte! As nações e seus governantes, economicamente influentes em esfera global, ajudariam bastante se mantivessem a consciência de que boas oportunidades não devem ser privilégio desta ou daquela nacionalidade, que explorar alguns para garantir o bem-estar de outros não pode ser o único caminho para a real felicidade, que ter uma Ferrari na garagem é bom... mas o melhor é não precisar dela para ser feliz.