Leituras filosóficas - Clube da luta e os dramas da vida moderna
RESUMO: O filme Clube da luta, lançado em 1999 pode nos parecer um emaranhado de ações violentas guiadas por indivíduos que buscam prazer, satisfação e pura destruição. Na verdade, essa obra cinematográfica é carregada de simbolismo e crítica social ao ler a sociedade moderna como aquela que perdeu o sentido de ser.
Buscando transmitir uma leitura do filme, trago nesta resenha, elementos do pensamento de Nietzsche, Marx e Benjamim como suporte à angustia da procura pelo sentido da vida apresentada no filme.
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Fight Club (br: Clube da Luta pt: Clube de Combate), é um filme norte-americano de 1999 dirigido por David Fincher. Foi baseado em um romance homônimo de Chuck Palahniuk, publicado em 1996. O filme é protagonizado por Brad Pitt, Edward Norton e Helena Bonham Carter.
Jack (Edward Norton) é um executivo jovem, trabalha como investigador de seguros, mora confortavelmente, mas ele está ficando cada vez mais insatisfeito com sua vida. Para piorar ele está enfrentando uma terrível crise de insônia, até que encontra uma cura inusitada para a sua falta de sono ao frequentar grupos de auto-ajuda. Nesses encontros ele passa a conviver com doentes e conhece a problemática Marla Singer (Helena Bonham Carter) e estranhos como Tyler Durden (Brad Pitt). Misterioso e cheio de ideias, Tyler cria com Jack um grupo secreto que se encontra para extravasar suas angústias e tensões através de violentos combates corporais. A crítica a respeito de Clube da luta se dividiu entre condená-lo como uma apologia da violência ou percebê-lo como "Laranja mecânica dos anos 90". Porém, todos concordam de onde partir para discuti-lo quando percebem que o filme é baseado no seguinte mote: nele os personagens buscam encontrar algum sentido à vida.
O filme começa em um ritmo vertiginoso, imagens do sistema nervoso passam em alta velocidade durante alguns minutos. Ao sair do corpo humano, encontramos Jack – que durante todo o filme permanece anônimo, como uma espécie de homem do subterrâneo – sentado, com uma pistola automática sendo apontada para sua boca. E, a partir de uma rememoração em forma de flashback, o protagonista propõe-se a contar como chegou àquela situação.
Jack é uma espécie de inspetor de sinistros de uma grande companhia de seguros, empresa esta que possui uma moral duvidosa já que o personagem de Norton se torna cúmplice de manobras que não dão direito a indenizações em casos de acidentes automobilísticos ocasionados por erros do fabricante do veículo. Vive trocando de fuso-horário, aumentando sua confusão mental, já que passa a maior parte do tempo viajando por conta de seu trabalho, comendo comida de avião e colecionando "amigos descartáveis". Em sua casa, como todo bom yuppie solitário, tenta se satisfazer procurando utensílios absolutamente inúteis para preencher os espaços da casa como também os de sua própria vida. "Antes líamos pornografia, agora é a coleção Hershow", sentencia.
A insônia é o problema que mais o abala, mas seu médico recusa lhe dar tranqüilizantes, aconselha-o a mastigar raízes de valeriana e a fazer esportes para conseguir um sono natural. Jack insiste: “Por favor, estou sofrendo”. “Quer ver sofrimento?” Diz o médico. “Dê uma chegada na igreja metodista terça à noite, você verá sujeitos com câncer nos testículos. Isso é sofrimento”.
Não apenas ele está triste quando deveria estar feliz, mas logo se sentirá também culpado por essa tristeza. Admite que essa tristeza sem razão está ligada a uma impotência que lhe é peculiar, uma vez que os outros se contentam com um sono natural ou sofrem verdadeiramente na vida. Ele, por sua vez, busca uma fuga, é chamado a atenção por isso e é criticado.
É na sua relação com o grupo de auto-ajuda que resolverá seu problema de falta de sono. Decide então frequentar outros grupos como os vitimados por doenças cerebrais, aidéticos, os que têm parasitas no sangue. Lá, onde todos choravam em uma grande catarse, Jack se sentia sereno a ponto de também poder chorar. A partir daí consegue dormir em paz, agora com seu vício-tranquilizante. "Toda noite eu morria. Toda noite nascia de novo. Ressuscitava."
Só que nem tudo ficaria perfeito por muito tempo. Logo aparece uma farsante que tira totalmente o sossego dele. Marla também começa a frequentar os grupos de auto-ajuda, criando uma relação inicialmente implícita com Norton, posto que os dois participam dissimuladamente daqueles ambientes com o intuito de apaziguarem seus vazios existenciais com o sofrimento contido naqueles grupos. Ele sabia que ela era uma aproveitadora, e seria impossível ter paz com alguém que estivesse somente tirando vantagem daqueles momentos de sofrimento alheio para se sentir melhor. Porém, mesmo sob a pressão de Jack e após algumas negociações, Marla realiza então uma espécie de rodízio sobre os grupos com ele, daí não se encontrarem mais.
Entretanto, Jack volta ao seu inferno astral, volta a viajar e a ter insônias. E é em uma das viagens de serviço que ele encontra Tyler (Brad Pitt), um vendedor de sabonetes (produzidos a partir da gordura humana encontrada nas clínicas de lipoaspiração) que possui uma enxurrada de discursos contra a sociedade de consumo, afirmando ser esta a razão da falta de desafios que compõe as perspectivas do homem moderno.
Após perder seu apartamento em uma explosão misteriosamente, Jack convida o recém conhecido Tyler para beber; e depois de divagações sobre o "sentido da vida" – "Somos consumidores, subprodutos de um estilo de vida, não possuímos as coisas, mas as coisas que nos possuem.” “Não nos importamos com fome, violência, pobreza, mas, sim, com marcas de cueca" –, eles começam a brigar. Depois de exaustos, e repletos de hematomas, descobrem que aquilo sim, conferia algum significante às suas existências. Dor física representava uma reaproximação dos instintos, onde o homem retorna a si.
Com uma ideia em mente e alguns simpatizantes criam o Clube da luta. Lá encaram a dor, o medo, o sofrimento e a morte como signos da verdadeira liberdade, porque “após perdermos tudo estaremos livres”. Sua crítica se fundamenta na noção de que a propaganda nos coloca para correr atrás de roupas e carros e por aceitarmos isso somos uma geração perdida. Segue dizendo que não temos guerras mundiais ou grandes depressões; nossas guerras são espirituais e nossas depressões são nossas próprias vidas. No entanto, os "vale-tudo" do Clube começam a não ser suficientes, e eles ampliam seus horizontes. Aquilo que surgia como uma crítica a nossa sociedade, porque esta torna o homem subproduto do consumismo, se torna uma milícia terrorista, composta para destruir símbolos de consumo: disparar alarmes de carros, dar laxante à pombos para que sujem os carros, explodir cafés e monumentos modernistas, enfim, declarar guerra a todos os símbolos do american way of life. Porém, com a radicalização deste processo, a competição entre Jack-Tyler começa a se acirrar, não só pelo comando do Clube, mas também por Marla.
Tyler, finalmente, programa o golpe final contra o sistema: destruir a sede de todos os cartões de crédito, zerando todas as dívidas, e gerando o caos no sistema financeiro americano. Jack tenta desbaratar o plano, buscando encontrar Tyler em todos os cantos do país onde já havia organização do Clube, mas Tyler sempre parecia estar "um passo à frente". É em meio a essa busca que Jack se dá conta de que ele e Tyler são a mesma pessoa iniciando aí uma corrida contra o tempo com o objetivo de rever as decisões tomadas por seu Eu desmedido.
Finalmente, Jack encontra Tyler em um dos prédios onde a milícia havia colocado as bombas. Depois de mais um combate entre eles, Jack se dá conta de que a arma em sua boca é um ato realizado por ele mesmo e depois de "matar" Tyler, ele e Marla observam os prédios do sistema financeiro implodirem.
Vale lembrar nesse momento uma fala de Jack ao seu então chefe imediato, quando este o questiona sobre um papel que continha as oito regras do clube. Ele afirma: "Pense bem o que você vai fazer com esse papel. Cuidado! Porque o psicopata que escreveu isso pode pirar e invadir essas salas com sua AR-10 e matar seus colegas de trabalho"; parece que tal profecia se cumprira de forma ainda mais dramática.
Ao observarmos o protagonista do filme percebemos claramente diante de suas falas iniciais seu posicionamento com relação a vida que leva. Porém, extremante comedido e racional permanece inerte diante de sua condição até o momento em que esse mesmo eu se realiza como desmedido e autoafirmativo. Uma maneira de analisarmos tal comportamento dual é através do pensamento de Friedrich Nietzsche. Para ele dois princípios naturais se integram no homem como dois impulsos vitais pelos quais é modelado: dionisíaco e apolíneo. Estes servem de parâmetros valorativos acerca do modo da ação humana e suas consequentes criações no âmbito da vida social. O impulso dionisíaco, negador de qualquer limite, conduz à exaltação e o apolíneo, baseado em critérios de harmonia e perfeição formal. Dentro da valoração dos dois princípios, Nietzsche contrapõe o espírito dionisíaco - o espírito da vida à apolínea e mortífera razão. Enquanto esta nasce da fuga diante da imprevisibilidade dos eventos da existencia real – que procura cristalizar com leis, regras e interpretações variadas -, o dionisíaco aceita a vida em todas as suas formas, compreendidos o caos, o acaso, e a falta de significado. Logo, para Nietzsche, Dionísio e Apolo são respectivamente símbolos de vida e de morte, força vital e racionalidade, saúde e doença, instinto e intelecto, escuridão e luz, devir e imobilidade, embriaguez e sonho. Naturalmente desmedido, o impulso dionisíaco enquadrou-se na forma de expressão do apolíneo; este, por sua vez, adquiriu a mobilidade dionisíaca, posto que a sua rigidez poderia conduzir também a vida ao completo declínio . Com o personagem de Edward Norton, tais princípios se dissociam. É assim que Tyler vive a aparência, a completude sexual, a esperteza, a capacidade de ser e fazer, de se tornar importante e de ser livre. E Jack vive a pura razão, a conformação, a lucidez, a sobriedade, respeito à ordem pública.
Toda essa dissociação do eu do protagonista tem como substrato uma análise crítica feita por ele à alienação produzida a partir do consumismo. Diz Jack, que o homem agora é visto apenas como consumidor e se comporta de tal forma que acaba por ser definido através de seus objetos. Teríamos aqui, portanto, a exemplificação do conceito de fetichismo de mercado, onde a mercadoria não é apenas o resultado da relação de produção, mas vale por si mesma, como realidade autônoma e, mais ainda, como determinante da vida dos homens. Quando a mercadoria se anima, se humaniza, obriga o homem a sucumbir às forças das leis do mercado que o arrastam ao enfrentamento das crises, guerras e desemprego. A consequência é a desumanização do homem, sua coisificação, sua reificação.
Vivendo em um estado de coisas em que a mercadoria vale mais que o homem e a vontade do mercado submete a vontade do homem há um afastamento da práxis. Esta, por sua vez representa a ação humana de transformar a realidade, mas que não se identifica propriamente com a prática, significa a união de teoria e prática, de ação e pensamento. Isto é, ao mesmo tempo que a consciência é determinada pelo modo como os homens produzem a sua existência, também a ação humana é projetada, refletida, consciente. Assim os indivíduos alienados não produzem ideias, não possuem consciência de sua própria existência e do que escolhem para si. E se de um lado encontramos os que não pensam sobre si, de outro temos aqueles que produzem as ideias que faltam aos primeiros. Está aí, portanto, a ideologia identificada pela construção de um conjunto de ideias que procura ocultar a sua própria origem nos interesses sociais de um grupo particular da sociedade.
Apesar de sua crítica contundente, nosso personagem principal, se aplica tão intensamente em seu projeto que acaba por criar o contraponto da crítica à alienação – outra ideologia. Determina, dessa forma, um corpo sistemático de ideias com determinado posicionamento interpretativo diante dos fatos. Cria ele uma ideologia dogmatizada, de forma que aqueles que a aceitam se afastam da vida coisificada, da sociedade capitalista, mas que, entretanto, se submetem a um conjunto de respostas prontas inquestionáveis, uma vez que a primeira regra é não perguntar.
Com a violência de Clube da Luta, David Fincher, tentou fazê-la servir de metáfora ao conflito entre uma geração de pessoas jovens e o sistema de valores da publicidade. Fight Club não atingiu as expectativas do estúdio nas bilheteiras e recebeu reações polarizadas dos críticos. O jornal The Guardian viu-o como um prenúncio de mudança da vida política americana, e descreveu o seu estilo visual como inovador.
Analisando a proposta de reflexão do filme apresentada por Fincher podemos também reconhecer um encontro com o pensamento de Walter Benjamin que em seu livro, A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica, considera que a arte, através da fotografia, teatro e cinema, ao tornar o seu acesso mais democrático contribui para uma «politização da estética» que contraria a «estetização da política» típica dos movimentos fascistas e totalitários dominantes do momento em que Benjamin produziu seu ensaio. O cinema, poderia assim, ser visto como um instrumento político e ideológico que traria incríveis expectativas na construção de uma nova história.