"Ponte para Terabítia" enaltece a ficção
Artigo de minha autoria (por incentivo do Clube de Cinema de Marília) publicado no Jornal da Manhã, de Marília, em 17/06/2017:
CINEMA
"PONTE PARA TERABÍTIA" ENALTECE A FICÇÃO
O filme “Ponte para Terabítia” (EUA, 2007), de Gábor Csupó, carrega em si todo o potencial para, com uma história simples de ficção, impactar positivamente o espectador comum de cinema, na medida em que este se identifique ou se emocione com as paixões humanas que explora. Entre elas, vividas pelo protagonista Jesse Aarons (ator Josh Hutcherson), estão o sofrimento pelo bullying de que é vítima na escola, o sentimento difuso de mágoa, ciúme e respeito em relação a um pai contraditório, o prazer inefável de viver uma amizade incondicional e, no desfecho, a dor pungente frente a uma perda traumática. Todo esse painel psicológico da natureza humana presente em Jesse e nas outras personagens com quem se relaciona e que o torna um garoto taciturno e solitário, emana do ambiente e condição sociais em que vive.
Sua família é de classe média baixa, tem irmãs que lhe são indiferentes e um pai dotado de um grosseiro pragmatismo diante das dificuldades financeiras, mas também de uma surpreendente ternura quando confrontado com a dor do filho (quem já não teve ou conheceu um pai assim?). E frequenta ainda uma escola que lhe é hostil, na qual é tratado como um aluno “esquisito”.
Tudo muda para Jesse quando a garota Leslie Burke (atriz AnnaSophia Robb) entra em sua vida. Leslie é também uma menina solitária e rejeitada pelos colegas, à sua maneira peculiar. Mas, ao contrário de Jesse, não se abala por isso, leva as coisas na brincadeira. Isso porque tem o espírito autossuficiente e descontraído, desafiando as convenções sociais ao vestir-se de maneira excêntrica e incomum a uma menina e preferir habilidades manuais e recreações mais próprias dos garotos, como participar de corridas com eles. De mente aberta e cheia de uma imaginação inventiva, é Leslie quem, numa floresta próxima do local em que moram, inventa e traz para ela e Jesse um refúgio contra suas adversidades, a que chama Terabítia, um reino de faz de conta que ambos passam a frequentar e onde se divertem interagindo com seus habitantes fantásticos.
É em Terabítia que ambos, enfrentando e vencendo tais criaturas imaginárias, encontram forças para enfrentar os colegas valentões que os oprimem na vida real. É aqui que o filme, claramente, destoa de outros filmes juvenis que lhe são correlatos, como os das séries “As Crônicas de Nárnia” e “O Senhor dos Anéis”, nos quais os seres fantásticos fazem parte das histórias. Em “Ponte para Terabítia” os seres fantásticos não existem de fato na história, estão apenas na imaginação dos protagonistas. O filme, ainda distinguindo-se daqueles, possui o mérito de provocar algumas reflexões filosóficas que transcende o simples objetivo de entreter os jovens.
Deve-se isso ao fato do filme ser uma obra sui generis pela causa remota e emocionante que lhe deu origem. Adaptado de uma novela juvenil homônima e premiada da escritora norte-americana Katherine Paterson, o filme foge do padrão recorrente de filmes adaptados de textos literários, pelo qual dificilmente conseguem transportar plenamente a densidade destes, muito por conta da restrição do tempo que sofrem para contar uma história. Pois o filme “Ponte para Terabítia” consegue a rara proeza de tornar a história e as personagens melhores do que na novela, mesmo mantendo a espinha dorsal da história intacta, aproveitando inclusive vários dos seus lances mais dramáticos. Essa proeza deveu-se, talvez, ao fato de seu roteirista principal David Paterson, o filho mais novo da escritora, ter sido, quando criança, vítima de um trauma (o mesmo que atinge Jesse) que o deixou arrasado, o que levou sua mãe a escrever a novela com o fim de consolá-lo. Assim, a mãe Katherine praticou metaficção, ao usar a ficção para mostrar o poder da ficção e da imaginação para curar.
Leslie, destarte, é uma personagem emulada da amiga real associada ao trauma, que David conheceu e admirou, e é por isso que, idealizada, talvez ela difira tanto das outras personagens da história, que são mais comuns e condizentes com a realidade. Daí a personagem modificada que emerge do filme a partir do livro ser uma nova personagem, a soma de uma personalidade admirável criada por um roteirista sensível com uma interpretação inspirada de AnnaSophia Robb, atriz que, admiradora da personagem do livro, se empenhou pessoalmente na busca por ser escolhida para o papel. A lucidez precisa das respostas de Leslie a Jesse em questões comportamentais, seu modo de ser independente diante da vida e sua imaginação criativa, a tornam, como um produto do cinema a partir da literatura, um desses modelos ficcionais que nos fascinam por suas qualidades, que nos inspiram, elevam nossos espíritos e nos induzem a tentar copiá-los, motivo pelo qual se constituem em exemplos morais para a sociedade.
O filme desperta outros temas filosóficos, além do que foi exposto neste artigo, como a ideia de um “refúgio para a imaginação” que Terabítia evoca como metáfora e a conciliação possível na polarização religiosa, emanada de um instigante diálogo entre Leslie, Jesse e May Belle, irmã mais nova de Jesse, na traseira de uma caminhonete.
Mas bastam o seu final emocionante, o carisma de Leslie e o precioso conhecimento sobre a natureza humana que Jesse e as outras personagens comuns proporcionam com seus conflitos, para tornar o filme memorável e digno de ser visto.
Paulo Tadao Nagata (Mestre em Filosofia, engenheiro eletricista e colaborador do Clube de Cinema de Marília)