SERRAS DA DESORDEM – “O índio, um estrangeiro em seu próprio território”
Assistir “Serras da Desordem”, um documentário sobre a vida indígena ainda selvagem de alguns sobreviventes dos milhares de massacres e chacinas que ficaram impunes, é poder se imaginar nos vãos do tempo, levando em consideração nossa raça e nossa mestiçagem, como seríamos se a nós ao invés de uma colonização branca, onde a imposição de uma cultura europeia dominante, autoritária, discriminatória e dotada apenas pelos méritos advindos de famílias abastadas, fossemos, desde nossos primórdios, causa utópica, elevados ao século XXI como pessoas, mesmo que civilizadas, mas com sangue corrente de bravos guerreiros indígenas e trouxéssemos em nossa cultura os traços fundamentais de sua vida de costumes? Outrora, donos de todo o extenso e continental território brasileiro.
Imaginem como seria falarmos o Tupi guarani em substituição do emprestado idioma português. Poder retirar a bandagem da hipocrisia da consciência que cegam homens e mulheres ao ver corpos nus, aos mostrarem suas vergonhas. Como seria se pudéssemos, como os índios, caminharmos livremente despidos, desimpedidos de nossos pudores, sem ter que fazer uso das fardas pesadas, herdadas da falsa indústria da moda.
“Serras da Desordem” tenta mostrar um pouco disso tudo o que se apresenta. Antes que os desavisados esperem ou imaginem um filme repleto de ação, aventura, drama, atores famosos, histórias de portugueses e sua Corte no Brasil e muitas lutas, aqui são meras referências, o que se verá é apenas o dia a dia de um solitário índio da tribo “Awa-Guajá”, que, em seu habitat natural, sobrevivendo como qualquer pessoa humana na Terra e sabedora de que as terras em que residiam a eles pertenciam, não se preocupavam com a presença de invasores. Acordavam, faziam suas tarefas matinais, se divertiam, viviam a rotina. À noite chegava com o crepúsculo e dormiam com as corujas.
Certo dia, aqui podemos nos imaginar como sendo um deles, sua tranquilidade foi abalada, espreitando-os durante a madrugada, pistoleiros esperam o raiar do dia e aniquilam praticamente toda a tribo de Ava, assim passou a ser chamado um dos únicos sobreviventes que restaram vivos daquela chacina e personagem deste documentário. Ele ainda consegue resgatar seu filho, um bebê que ainda está com poucos meses de vida, mas que, ao passar de alguns dias acaba morrendo.
Ava embrenha-se mata adentro, munido de sua arma, arco e flecha, com a coragem dos grandes guerreiros indígenas, não os das ficções românticas de José de Alencar, que mais pareciam dândis perdidos em florestas idealizadas por escritores que tinham como escopo principal a visão de uma mulher idealizada. O espírito de Ava era o espírito dos grandes xamãs, dos espíritos das árvores e das águas, do fogo e do ar, não tinha medo de nada, em sua natureza possuía apenas a ternura de uma criança abandonada precisando de afeto e trazendo no rosto um sorriso quase que imutável, sorriso de um ser que precisa urgentemente de carinho.
Ele é capturado ainda na selva, mas é levado para o seio de pessoas que não lhe farão mal, mas que o tratarão como se ele fosse da família. Lá, ele aprende alguns verbetes da Língua Portuguesa, mas o mais sensacional é vê-lo se expressar em sua língua arcaica, língua essa que em alguns anos estará extinta. Ava encontra muitas pessoas com quem convivera antes, chega a se sentir confiante e seguro por um tempo. Possui a inocência de uma criança, não possui a maldade impregnada da rotina diária que se adquire de pouco em pouco pelas derrotas da vida. Para ele, viver era apenas ver o dia passar enquanto o sol o iluminava; acompanhar aquilo o que as pessoas o mandavam fazer, com isso esperava o aparecimento da lua, via as luzes dos candeeiros e algumas histórias que ele não entendia coisa alguma, mas que, mesmo assim, sempre ria no final, e aos poucos percebia que ia ficando fraco dos olhos, fazia o gesto de que ia dormir, para amanhã, num novo despertar, começar numa mesma rotina. Isso para ele era sua felicidade, mesmo que transitória.
O filme se confunde em cores, ora é projetado monocromaticamente, ora pictoricamente. Esses despertares provoca em quem assiste o documentário uma visão de dentro para fora de um mundo sem equilíbrio, um mundo na cosmovisão de alguém que acabara de sair da Caverna de Platão, principalmente, se tomarmos como foco a impressão que se tem o índio para esse mundo – Ele ainda o tem dificuldades de adaptações, não consegue ambientá-lo com todas as suas cores, por isso, fica preso, num calabouço escuro, que aos poucos vai se abrindo, é tanto que após o encontro com a tribo de sua origem todas as suas zonas sensoriais se expandem e ele não enxerga mais o mundo de uma maneira binária.
Ele que estava acostumado a não vestir o mundo sem calções ou calças, camisas ou camisetas, saias ou saiotes teria que adaptar-se ao mundo careta e antiliberal dos “brancos”, seria obrigado a usar roupas todos os dias. Mas ensiná-lo a usar roupas era apenas um pequeno passo, ele agora vivia em uma grande cidade, não mais em taperas escondidas no meio do mato, onde ele podia, em qualquer tempo, dar uma esticada até uma moita e dar uma “cagadinha de leve”, agora, por não saber como tratar de suas fezes ali, naquele espaço enclausurante, simplesmente depositava-as do lado de fora da janela.
Fico imaginando o quão difícil deve ter sido todo o estudo, pesquisa, contato, dificuldade entre línguas, encontrar a pessoa certa para representar o ator que no caso seria ele mesmo, o que é mais gostoso no filme é que por nunca se imaginar naquela situação Ava não se sentia constrangido em momento algum, fazia as coisas que lhe eram corriqueiras em sua labuta diária, o que os “cameramen” fizeram foi somente dar ângulos certos a posições e espaços que tornassem cada vez mais reais as cenas, com relação a roteiro, são quase inexistentes. Encontrar uma tribo que não se corrompeu aos descaminhos e aos malefícios da sociedade é muito difícil nos dias atuais, por isso a importância documental e histórica deste filme. Ele deve ser celebrado, dentro de alguns anos, como material antropológico de estudo obrigatório, pois a sua força didática, original, corajosa e de extrema sensibilidade são flagrantes aqui.
O filme termina com Ava, depois de ter contato com um possível intérprete de sua língua para o português, descobrir que o mesmo é seu filho que teria conseguido fugir à matança e, desde então, por um bom tempo foi criado por fazendeiros até a FUNAI descobrir e resgatá-lo. Os dois, numa união inusitada vão em busca de seus parentes e de sua cultura preservada no local onde ele realmente se sente bem, nas matas do interior de Goiás. Estes índios se encontram e se confraternizam depois de muito tempo.
O filme termina da maneira como começou, mas mostrando o “making off” da primeira cena do documentário. Nela o índio demonstra a mesma naturalidade que mostra ao ser gravado, sem chiliques, sustos, preocupações, ansiedade, constrangimento ou qualquer coisa do tipo. Acende um fogo de maneira rudimentar e espera que o mesmo se propague até consumir uma parte significativa de palha e madeira, enquanto isso, a equipe de direção que nada pode fazer a não ser assisti-lo, fica ali esperando e gravando. As últimas imagens do documentário é uma entrevista que ele dá, em sua língua, justamente para mostrar que além de toda a sua desenvoltura diante da câmera esta mesma figura ainda tem o traquejo de se embrenhar num trocar de informações pessoais sobre sua vida que, infelizmente, não possui legenda no filme.