Black Mirror - Mídias Sociais e Erving Goffman (primeiro episódio, terceira temporada)
Estava jogando baralho em família quando minha irmã e minha namorada começam a falar sobre um seriado que - segundo elas - fala do mundo como é hoje, mesmo sendo uma ficção científica. Fiquei curioso e o assisti. De fato, creio que filmes dizem muito a respeito do mundo. Isso é bem claro em um documentário ou em um filme baseado em fatos reais. Mesmo um filme de comédia, um romance ou - como é o caso de black mirror - uma ficção científica dizem muito do mundo em que vivemos.
Lacie Pound é uma jovem adulta de uns trinta anos, bonita e muito bem educada. Aliás, todos com quem ela se encontra na rua são muito bem educados. Sabe quando você acena para alguém, a pessoa vê e não te responde? Cara, isto não acontece neste mundo. Isto porque todas as interações são avaliadas. Tanto as interações virtuais (como algo que alguém postou numa rede social). Como também avaliamos as interações no ambiente físico. Se encontramos um vendedor e compramos um café tanto o comprador avalia o vendedor como o vendedor avalia o comprador. O resultado é que cada pessoa tem uma nota que sintetiza todas as avaliações que já recebeu. Você consegue imaginar o peso desta nota? Todos têm acesso a esta nota e todas as interações a levam em consideração. Até institucionalmente ela é considerada. A entrada em alguns ambientes não é permitida para quem tem a nota baixa, o valor de um imóvel tem desconto se você tem uma nota alta… Ter uma pontuação alta confere uma série de privilégios, talvez o mais importante é que a avaliação de alguém bem pontuado vale mais.
Lacie Pound, (4,2 pontos) vive com seu irmão (3,7 pontos) em uma casa simples, se exercita, toma café em ambientes agradáveis, trabalha…. E nada disso a deixa satisfeita. Gostaria de viver sozinha em um bairro em que as pessoas têm maiores pontuações. O aluguel, caso ela tivesse 4,5 pontos, teria um desconto promocional e ela poderia pagá-lo. Lacie Pound se encontra com um consultor que a avalia. Ele diz que em seis meses, caso continue em sua trajetória, alcançará seu objetivo. Lacie Pound tem pressa, pergunta o que pode fazer para alcançar 4,5 pontos em um mês. O consultor diz que para isto ela precisa ter muitas altas avaliações de pessoas com alta pontuação.
A partir deste conselho começa a jornada de Lacie Pound, é aqui em que ela passará a se arriscar. Sairá do conforto do seu ambiente cotidiano e se jogará em sua aventura na qual, se conseguir superar os desafios com os quais se deparará, alcançará a almejada pontuação. Atrás do monitor do computador do trabalho Lacie Pound têm um boneco muito feio. Ela tira uma foto dele e posta em uma rede social. Achei uma manobra arriscada, pensei “ela aposta que postar algo íntimo, mesmo algo tão feio, trará simpatia”. E acabou funcionando, ela recebeu a avaliação total de Joyce, a menina perfeitinha que possui cinco pontos!
Mais tarde em casa ela recebe uma ligação de Joyce! O irmão fica espantado. “Você está recebendo telefonema da perfeitinha?! Como assim Joyce-perfeitinha-cinco pontos está te ligando?” “Deixa eu atender, sai daqui!” Joyce se sensibilizou tanto com o bonequinho de pano que ambas fizeram juntas da infância que resolveu convidar Lacie Pound para seu casamento! O casamento tem centenas de convidados e todos têm nota acima de acima de 4,7! Interagir com tantas pessoas bem pontudas em um ambiente acolhedor é uma ótima oportunidade para alcançar 4,5 pontos, talvez até passar disso! Joyce perfeitinha faz um convite ainda melhor, convida Lacie Pound para ser madrinha. Discursar na frente de centenas de pessoas bem pontuadas é a oportunidade perfeita para atingir os 4,5 pontos! Ao terminar a ligação o irmão fica bravo! Joyce é a menina babaca que fazia pouco caso de Carol, ainda por cima ela transou com o cara por quem Carol era apaixonada!
A despeito das advertências do irmão Carol se joga na oportunidade de alavancar sua pontuação. Ao chegar no aeroporto ela descobre que seu voo foi cancelado e o próximo é apenas no dia seguinte. Há uma vaga em um voo especial que só é permitido a tem 4,2 pontos ou mais. Carol teria, mas após uma discussão com o irmão (em que ele a avalia mal) e com uma estranha sua nota ficou com 4,19. Carol insiste muito mas o sistema não permite o encaixe já que ela não tem pontuação suficiente. Lacie Pound acaba causando um leve tumulto ao final do qual um segurança usa seu poder de polícia para lhe dar uma punição temporária. Ela terá menos um ponto durante 24 horas e toda avaliação negativa terá peso dobrado. Para piorar todos que esperavam na fila do aeroporto a avaliaram mal.
Mas ainda ainda há tempo de reverter a situação, basta pegar um carro e dirigir a noite toda até o casamento e fazer o discurso de madrinha. Só que Carol agora fará esta viagem como uma cidadã com pontuação menor que 3. Ela terá que usar os recursos destinados às pessoas mal pontuadas e será vista por todos como tal. É uma aventura rica de simbolismos, a pessoa mais interessante (e mais solidária) que encontrou é uma que desistiu de fazer o jogo das aparências. Chegando no casamento a Joyce perfeitinha não aceita que uma pessoa tão mal pontuada seja sua madrinha. Se estabelece um intenso conflito (não vou entrar em detalhes, assista a este episódio). Ao final Carol é presa ao lado de um desconhecido e ambos ficam se xingando. É um final irônico. Parece que eles estão com raiva, e estão. Mas na prisão eles finalmente exercem a liberdade deste jogo de aparências, finalmente podem ser mal educados livremente.
Voltando ao jogo de baralho onde eu e minha família conversávamos. Minha irmã disse que a vida neste seriado é como a vida em nossos dias. Nós damos like a postagens no facebook, no instagram, nós damos pontos aos motoristas de uber… O modo como somos vistos depende destas pontuações. Se você acompanha redes sociais sabe que se a avaliação de alguém popular influi muito mais do que das outras pessoas. Por exemplo, eu acompanho determinadas pessoas no facebook, caso uma delas dê like numa postagem de um desconhecido tem uma boa chance de eu ver tal postagem. Caso uma pessoa que eu siga no face (mas que eu acompanhe pouco suas postagens) dê o mesmo like a chance de eu ver esta postagem é ínfima. Como neste episódio de Black Mirror também no facebook as avaliações de pessoas populares são mais importantes do que as demais. No seriado uma pessoa não consegue ir trabalhar por ser mal avaliado. Será que ocorre algo semelhante no mundo em que vivemos? A chance do seu empregador consultar suas redes sociais é alta. E pode ter certeza se você tem milhares de seguidores no youtube a chance de ser contratado em diversos empregos é bem maior. Por estas razões as meninas diziam que este episódio mostra a vida como ela é. Concordo com elas. Só acho que a semelhança vai muito além tecnologia.
Ervin Goffman, um sociólogo que morreu em 1982, dizia que nos vestimos de diversas máscaras ao nos comportarmos. Somos uns ao nos relacionarmos com nossa mãe, e já somos outros a nos relacionarmos com pessoas em ambiente de trabalho. Nossos relacionamentos são pautados por pressões e regras, a grande maioria das quais estão nas entrelinhas. O que este episódio faz é exibir o mecanismo que nos compele a seguir as regras implícitas (as avaliações dos outros). A grande diferença é que este mecanismo é velado no nosso dia a dia. No seriado o avaliação é feita explicitamente através da pontuação que damos a cada encontro.
Uma das obras mais importantes de Goffman é ‘Manicômios, Prisões e Conventos’. Nele Goffman diz que existem instituições totais, nela as pessoas sempre se sentem observadas e isto as faz agir conforme as regras. Num presídio sempre há janelas em que o presidiário não consegue ver o guarda, mas o guarda vô o prisioneiro. Desta maneira o presidiário sente que está sempre sendo observado. Neste episódio as pessoas sempre estão sendo observadas umas pelas outras, por isto sempre têm a obrigação de serem tão cordatas, educadas. Mesmo o guarda do aeroporto que impõe a sanção à Carol é muito educado e simpático. Então a ironia de sentir-se livre na prisão é muito bem explicada sob o prisma de Goffman. Nesta ficção científica somos sempre observados (à maneira das instituições totalitárias). A grande ironia é que justamente ao perderem a liberdade de ir e vir as pessoas se libertam dos grilhões do julgamento alheio. Nesta ficção científica o pan-óptico está fora das prisões.