A Última Noite - Um Chamado Para a Transcendência

Alguns atores conseguem manter o público do seu lado mesmo quando interpretam personagens politicamente incorretos. Edward Norton tem nesta capacidade sua característica mais marcante. Desta feita, Norton é Montgomery "Monty" Brogan, um traficante de drogas que vive uma vida confortável às custas da desgraça alheia.

Monty vive em Nova York com uma namorada, Naturelle (Rosario Dawson), tem um pai com quem mantém boas relações (James Brogan, Brian Cox), entre seus amigos um professor (Jacob Elinsky, Philip Seymour Hoffman) e um operador de bolsa de valores (Francis Xavier Slaughtery, Barry Pepper) são os mais queridos. Monty é carismático, determinado, de bom nível cultural, de bom coração. Mas, isso não impede que ele seja traído por alguém que o denuncia à polícia. Ele é autuado, condenado a sete anos de prisão e deve se apresentar, para cumprir a pena, em data determinada. O filme enfoca suas últimas 24 horas de liberdade.

Spike Lee, o diretor, é famoso por trabalhar com temas que envolvem conflitos pessoais frente à ordem social estabelecida e, geralmente, sob a ótica de personagens estigmatizados (latinos, negros, imigrantes, pessoas em situação de risco social, criminosos). Seu A Última Noite não é apenas a história de um traficante condenado, é um filme sobre o livre arbítrio, sobre escolhas sem volta. Monty poderia ter se envolvido com o tráfico ou não; poderia se relacionar com uma garota de 18 anos (sendo ele bem mais velho) e feito dela sua mulher ou não; poderia ter socorrido um cachorro ferido e feito dele seu companheiro constante ou não; ele pode se entregar às autoridades e passar a lutar para sobreviver em um ambiente penitenciário onde, fatalmente, correrá o risco de ser surrado e violado... ou não. Escolhas determinam rumos de vidas inteiras e, em conseqüência, os destinos do mundo.

O diretor acerta nas tintas e tons e consegue deixar o espectador de cara com o certo e o errado, a ponto de perceber que as fronteiras entre um e outro podem ser muito frágeis e por vezes enganadoras. Os momentos retratados são de reflexão. O pai, a namorada, os amigos, todos se sentem culpados por não terem tentado chamar Monty à razão e mantê-lo longe do tráfico. Ele reavalia a própria vida e conclui que não pode culpar ninguém por suas escolhas, pois foram as suas livres escolhas.

Durante todo o filme o espectador fica em suspenso, se perguntando se não haveria um mal entendido, ou onde estaria a saída para Monty livrar-se da prisão de uma maneira justa. O personagem parece consternado, triste e assustado mas, sem opção. A solução final é perfeita! As últimas cenas são uma surpresa, são belas, poéticas e bastante apropriadas para uma obra que almeja provocar reflexões em qualquer época. Aceitar ditames legais impostos pela sociedade, sofrer as conseqüências negativas da violência da prisão no corpo e, pior, na alma, ou virar a própria mesa e se dar uma nova oportunidade, correndo riscos e sofrendo perdas, mas com o coração aberto para o auto-aperfeiçoamento e um novo recomeço? Spike se refere a essas cenas como “fantasia”, mas também é verdade que o futuro, seja como for, pode ser construído a partir de um sonho.

Quando do lançamento do filme, no Festival de Cannes, em 2002, Spike e Norton se aborreceram bastante com a imprensa que tendia a chamá-los de oportunistas por terem abordado o atentado de 11 de setembro e usado cenas que mostram a área em que estiveram erguidas as Torres Gêmeas. O terreno (Ground Zero) foi filmado do alto de um prédio próximo e as imagens mudas falam de perplexidade e impotência. Onde haviam dois edifícios imensos e milhares de pessoas trabalhavam diariamente, se vê apenas o alicerce dos prédios, algumas máquinas e homens limpando o que sobrou.

O fato é que a arte reflete a história e o verdadeiro artista tem um compromisso nesse sentido. As cenas foram filmadas em Nova York, entre 13 de maio e 03 de julho de 2002 (é o primeiro longa metragem feito na cidade depois do atentado). Monty foi caracterizado como o homem que caminha pelas ruas acompanhado pelo cão cuja vida ele salvou. O resultado é próximo ao de Filadélfia, o filme em que Tom Hanks interpreta um advogado vitimado pela Aids (e que também tem Bruce Springsteen na trilha sonora). Em A Última Noite, Nova York não é apenas um pano de fundo, mas parte da personalidade e da vida do próprio personagem. Assim, retratar aquele momento histórico significa retratar parte de um momento daquele homem em sintonia com o ambiente social, com a cidade ainda profundamente ferida pelo atentado, com as pessoas ainda lamentando a perda de entes queridos. Monty sente o drama da cidade acrescido ao peso de seu próprio infortúnio. A ligação entre personagem e cidade também é explicitada em um longo monólogo diante de um espelho. Especialmente nesta passagem, Norton dá um show de interpretação e faz lembrar seu personagem em Clube da Luta.

As referências aos episódios de 11 de setembro são apresentadas de forma quase surreal, porém sempre respeitosa, e contribuem para aprofundar a reflexão do espectador. Até que ponto uma sociedade, que elege governos que a coloca como alvo do desprezo de grande parte da população mundial, é sábia o suficiente para dizer a um homem o que ele deve fazer para corrigir seus próprios erros ( importante considerar se imergí-lo em ódio e violência seria o ideal para sua recuperação) e encontrar o caminho correto para viver sua própria vida, que é única? Alguns podem achar a colocação desproporcional ou inadequada e certamente não é uma questão simples, mas a reflexão pode representar a única chance de transcendência e redenção para aqueles que pensam na justiça como oportunidade de correção dos males e não como meio de vingança social.

Título Original: 25th Hour

Lançamento: 2002, EUA

Site Oficial: http://touchstonepictures.go.com/25thhour

Direção: Spike Lee

Roteiro: David Benioff, baseado em livro de David Benioff

Música: Terence Blanchard

Elenco

Edward Norton (Monty Brogan); Philip Seymour Hoffman (Jacob Elinsky); Barry Pepper (Francis Xavier Slaughtery); Rosario Dawson (Naturelle Riviera); Anna Paquin (Mary D'Annunzio); Brian Cox (James Brogan); Tony Siragusa (Kostya Novotny); Levani Outchaneichvili (Tio Nikolai); Isiah Whitlock Jr. (Agente Flood); Michael Genet (Agente Cunningham); Patrice O'Neal (Khari).