Invasões Bárbaras - Embate e reconciliação entre pai e filho.
Invasões bárbaras se passa no Canadá em 2003. Então por que usar um título (Invasões Bárbaras) que remetem à invasão do Império Romano por povos (que os romanos chamavam de bárbaros) e que levaram à Idade das Trevas? Cara, este é um título excepcional por vários motivos. Primeiro porque deixa claro sobre o que é o filme. Segundo porque é um título irônico. Terceiro porque remete à transição da sociedade. Voltarei a estas características do título. Mas antes vou falar um pouco sobre o filme:
O começo é em um hospital público canadense. Tudo está uma bagunça, pessoas no corredor, uma freira distribui hóstias a devotos em um esforço para prover paz espiritual em um ambiente bastante mundano. Ela oferece uma a Remy, um professor universitário careca (devido ao tratamento de câncer). Ele recusa. Remy é um professor de história típico para sua geração de professores universitários: ateu e socialista. Sempre que se encontram dá lições históricas à freira mostrando que a instituição da qual ela faz parte (a igreja católica) contribuiu em grandes atrocidades (como o genocídio aos índios nas américas). Em contraposição a freira demonstra apenas ternura.
Remy está acompanhado de sua preocupada esposa. Ela liga para seu filho, Sébastien, e avisa que seu pai está piorando e insiste para que venha ajudar neste momento final. Sébastien resiste, diz que no verão passado eles nem se falaram direito. Isto sem contar que ele mora na Inglaterra, seus pais estão em Toronto (Canadá). Apesar disso tudo, por consideração à mãe Sébastien chama sua esposa e vai até os pais.
O encontro entre Remy e Sébastien é terrível. Remy representa os valores que Sébastien (seu filho) sempre evitou. Remy era narcisista e dado a encontros amorosos com amigas e alunas. Sébastien representa tudo o que Remy lutou contra ao longo da vida. Sébastien é a representação do puro capitalista sem preocupações sociais. Trabalha (com muito sucesso) na bolsa de Londres. Quando se vêem partem para uma violenta discussão.
Agora algo sutil que eu gostaria de chamar atenção: Remy (o pai) e Sébastien (o filho) são os personagens principais, ambos homens. O encontro amoroso entre ambos, mesmo ante a enfermidade do pai, é impossível. Mas o lugar de cuidado é um lugar feminino. As mulheres - a esposa de Remy, a esposa de Sébastien, a freira, a enfermeira - todas contribuem para o amor e o acolhimento. Sem elas a violência do encontro não seria suportável. Me pergunto se esta situação é sutilmente machista: os personagens principais masculinos e um mundo de mulheres interessantes gravitando ao redor deles. Os homens focados nos seus umbigos, nos seus problemas, nos seus valores. As mulheres focadas em carinho, amor e no bem coletivo. Elas estão em papéis nobres, mo protagonismo está com eles. Seria isto machismo? Não vou me posicionar.
A partir da insistência da mãe e do carinho da esposa Sébastien aceita ficar e cuidar do pai. O primeiro passo é melhorar suas acomodações. Neste sentido é bom registrar que há um conflito de valores (que pauta todo o filme). Remy diz que não quer sair do hospital público, votou por este sistema. Sébastien, então faz o que pode. Usa sua fortuna para conseguir o conforto do pai. Ao se deparar com negativas não se faz de rogado, começa a distribuir fartos subornos para conseguir o conforto do pai. Assim consegue acomodações melhores, consegue que pintem o quarto. É impressionante como nós, como espectadores, tomamos partido do filho. Este é um ponto interessante em relação ao audiovisual em geral. Ao se deparar com uma pessoa que faz incríveis esforços para superar uma adversidade aparentemente incontornável o espectador cria uma simpatia. Isto acontece a despeito do caráter do personagem ou de suas intenções. Mas no caso particular deste filme o personagem quer o bem do pai (um pai que o rejeita). Toda esta complexidade contribui para tornar o filme memorável. E é exatamente nisto que se constituem as invasões bárbaras: O filho usa seu dinheiro e seus valores para alcançar um fim individualista (o bem do pai) derrubando assim os valores socialistas do pai. Remy defendia a coerência de seus valores socialistas, “se os outros não podem ter um tratamento digno é justo que eu, apenas por ter um filho rico, ter o tratamento digno?”. Invasões Bárbaras é um filme sobre amor, sobre família, sobre tolerância, mas - como indica o nome - também é um filme sobre a invasão destes valores individualistas corrompendo um idealista socialista.
Em vista da certeza de uma doença fatal e dolorosa Sébastien resolve fazer de tudo pelo conforto final do pai. Primeiro resolve comprar heroína para aliviar as dores do pai. Mas onde achar um produto ilegal? Sébastien resolve ir até a polícia e perguntar. Meio ingênuo, não? Mas dá certo, eles dão dicas que o levam ao caminho correto. A filha de um dos amigos é uma viciada que passa a intermediar o provimento de heroína. Ela, inclusive, tem uma das falas mais fortes do filme. Remy diz que ama a vida, ama viajar, beber vinho e desfrutar dos prazeres de suas amantes. Destes prazeres há anos o único que ele desfrutava era o vinho. Então ela diz, “Você não ama sua vida, mas a vida que você tinha. Aquela vida já morreu há muito tempo.”
O leito de morte é maravilhoso, eu gostaria de ter um assim: uma casa à beira do lago com todas as pessoas queridas ao redor. Há um jantar de despedida com um excelente vinho as comidas favoritas de Remy. Ele não prova nenhum. Apenas cheira o vinho e diz para que eles o tomem e o apreciem por ele. Então ele toma uma dose de heroína e uma overdose de alguma droga que o mata.
Este filme é sobre família, sobre amor, sobre tolerância. As situações de tolerância são tantas: a começar pelo leito do hospital, a esposa de Remy faz questão que Sébastien chame os amigos de Remy, dentre eles duas amantes. Em outra cena a mãe da filha viciada diz à filha, “Uma das coisas que me deixa mais triste é saber que eu sou a culpada por seu vício.” A filha responde, “não importa de quem é a culpa.” A própria relação entre Remy e a freira é de tolerância. Ele faz acusações duras, em tom de sermão acusando a igreja de ter genocida. Mas é ela quem indica ao seu filho, Sébastien, que deve dizer ao Remy que o ama. Se não fosse pelo título, Invasões Bárbaras, talvez nem nos déssemos conta de que o filme é principalmente sobre a contraposição de valores do pai e do filho, especialmente sobre a derrocada de valores coletivos (socialistas) ante os valores individualistas do capitalismo. O título, inclusive, chama atenção para o caráter moralmente reprovável (ao chamar as invasões de “bárbaras”). Mas é irônico, pois a despeito do lado moralmente deplorável tudo de bom do filme (o amor, a tolerância, a reconciliação entre as personagens) advém destas invasões.