Nanook, o esquimó: Documentário x Ficção
Gente, uma das maneiras de se comunicar é através da arte. Uma forma de arte é o audiovisual (filmes, por exemplo). E um dos temais mais interessantes da comunicação é o quanto ela diz respeito à realidade. Colocado assim parece um pouco distante da realidade, então vou colocar esta questão de uma maneira mais específica: Quanto um documentário diz da realidade? Quanto uma ficção diz da realidade? E ainda, quando um filme deixa de ser ficção e passa a ser documentário? Não são questões incríveis? E sabe o que é melhor? Temos o filme perfeito para discutir tudo isto: “Nanook, o Esquimó”.
É a história de uma família constituída por algumas crianças, um pai caçador e duas mulheres. Eles vivem em meio ao árido gelo. Não há vegetais e toda sua vida depende de caçadas. Até a pesca parece uma caçada (com arpão). A vida não é fácil, entre uma caçada e outra a família pode passar fome. Há uma cena em que a família passa a noite apenas com uma pequena foca. Fiquei imaginando a fome dos cães que puxam o trenó, certamente eles seriam os últimos na fila dos alimentos.
A propósito, se você se importa com animais é um filme difícil de ser assistido. Não há cenas pesadas, mas a cada caçada eu sofria. Até de uma criancinha brincando com uma raposinha me entristecia. Ficava pensando no horror que é para a ela ficar amarrada em meio a monstros (certamente é isto que os humanos são para ela) em seus últimos momentos de vida.
Coisas que para outros povos é relativamente simples no ártico são incrivelmente difíceis. Uma das cenas que mais gosto é quando eles têm que fazer os arranjos para passar a noite. No intervalo de uma hora eles constróem uma habitação incrível: um iglu com janela e com refletor para entrar luz! Um abrigo para os ventos bem quentinho! Bem… mais ou menos, lembre que o iglu é feito de gelo. Dentro está certamente abaixo da temperatura de congelamento (caso contrário ele derrete). O filme mostra a alegre família superando cada obstáculo e desafio a que é submetida. Mas como foi filmado?
Em 1910 um americano (Robertt Flaherty) foi para o extremo norte, explorar o desconhecido: foi ártico canadense conhecer a geografia e o povo daquele lugar árido. Ficou maravilhado com aquele mundo mágico. Imagina, para um americano daquela época deve ser como ir a marte e conhecer marcianos! Ele comprou uma câmera e foi registrar aquele mundo maravilhoso. Passou dois anos gravando um monte de gente e um monte de lugares incríveis!
Beleza, horas de filmes gravados. Só que Flaherty deixou um cigarro cair nos filmes. Os filmes eram filmes mesmo (cheios de nitrato), muito inflamáveis: Queimaram. Coitado de Flaherty.
Mas aquela experiência não foi inútil. Ele aprendeu muito e voltou. Falando assim parece fácil, mas esta brincadeirinha de passar anos no ártico canadense é cara. Ele passou anos buscando que o financiasse e acabou achando uma companhia francesa para financiá-lo. Só que ao voltar após tantos anos o povo que vivia lá (os inuit) abandonaram hábitos tradicionais e passaram a usar a tecnologia europeia em muitos aspectos de sua vida. Percebe? Os hábitos que Flaherty havia gravado estavam perdidos do registro cinematográfico para sempre!!! Ou não?
Aqui Flaherty tomou uma das decisões mais sábias e polêmicas da história do cinema. Tem gente que defende que documentário deve ser feito por um cineasta “invisível” às câmeras. Flaherty deveria ficar filmando os inuit (conhecemos como esquimós) em seus afazeres, já os inuit - após se acostumar com a presença de Flaherty - passariam a agir como se ele não estivesse lá. Assim ele faria um documentário, um registro fiel da vida daquele povo. Mas, caso agisse deste modo, Robert Flaherty não teria acesso a alguns hábitos tradicionais se perderam no filme que pegou fogo! Qual foi a decisão de Robert Flaherty? Decidiu dirigir os inuit. Ele dirigiu todas as cenas! Além disso ele escolheu a dedo cada um dos personagens de sua história.
Tem gente que defende que este filme é uma ficção (os personagens são inventados, a história criada, as cenas montadas em função da câmera). Tem gente que defende que este filme é um documentário. À época o povo ainda estava à vontade com a vida tradicional, eles acham muito legal registrar a vida que levavam tradicionalmente. Caso Flaherty fosse purista ele teria gravado os inuit caçando com espingarda. Como foi ousado ele gravou-os caçando com o incrível arpão-gancho tradicional do seu povo. Uma das cenas mais legais é quando chega a tempestade e eles fazem um iglu (o iglu é incrível, tem até janela). Caso fosse purista não poderia ter feito esta cena pois a câmera não cabia no entrada do iglu (a cena foi gravada em um iglu especial feito apenas para o filme). A câmera da época devia ficar estática sobre o tripé. Seria impossível registrá-los pulando e correndo na neve se eles não tivessem feito as cenas para a câmera.
Quem defende que Nanook é um documentário (é o meu ponto de vista) argumenta que o filme, através da reconstituição, personagens e interpretação, mostram muito bem uma realidade que seria impossível ser retratada de outra forma. Defendo que mesmo o diretor tendo impacto durante a gravação o filme ainda pode ser considerado um documentário caso resulte em um registro tão fiel quanto possível de alguma realidade. Repare, se só o registro invisível fosse autorizado a ser chamado de documentário não haveria documentário algum sobre o Império Romano, pois seria impossível registrá-lo. E as entrevistas então? Por que elas são autorizadas? Nelas os entrevistados estão respondendo às questões colocadas pelo diretor.
Entendo que há uma diferença: na entrevista o entrevistador não finge a ausência do realizador cinematográfico. Mas entendo que tal diferença não é tão importante. Também acho que o método de Robert Flaming possibilitou um registro da vida inuit muito mais detalhado do que o método “invisível” possibilitaria. Além disso Robert Flaming alcançou algo sem o qual talvez seu filme se perdesse em desinteresse (ao invés de ser alçado a um clássico do cinema). Ele alcançou o interesse da plateia mundo afora. Particularmente amei o filme.