Resenha-resumo de ESTAMOS TODOS BEM, com MARCELO MASTROIANNI
Republicação - Texto de 2010
À sala de estar chega o cheiro das flores de laranjeira, anunciando a chegada do verão. A casa é à beira-mar, na Sicília. O velho aspira o cheiro com delícia, lembrando-se da chegada iminente dos cinco filhos, cada qual a viver em cidades diferentes da Itália. Para melhor se assegurar diz a mulher: "Ângela, eles estão para chegar, já aluguei os bangalôs.” Apesar da certeza, nenhum dos filhos – três homens e duas mulheres – aparecem, como costumam aparecer todos os anos, por ocasião do aniversário do pai.
O velho aposentado, maciço como antigo rochedo, com os olhos enormes sob os também maciços graus dos óculos, vai carregando, lentamente, a mala e um gradeado com presentes. Entra no trem, acomoda-se, dirige-se ao continente. Na carteira, carrega uma foto da família: ele, a mulher, os cinco filhos, todos caracterizados como personagens, cada um de diferentes óperas, das óperas a mesma de sempre paixão de um senhor siciliano. Orgulhoso, o velho o vai dizendo aos companheiros de viagem, esgotando-lhes a paciência. Esqueço-me,neste momento, do nome de dois dos seus filhos, guardo o de três: Álvaro, Tosca, Norma.
Por uma dessas preferências não justificadas pela razão, reais para além dela, o velho pai chega, primeiro, à cidade onde mora Álvaro. Vai a casa, não o encontra; vai ao trabalho onde o filho é professor universitário e ninguém o conhece nem seu nome consta da relação de professores; telefona várias e várias vezes e permanece embatucado, emudecido diante do mesmo idêntico recado na secretária eletrônica. Amargando os desencontros, decide ir à procura de outro dos filhos. Encontra-o, também à nora e à neta, no entanto, nada flui bem. Este filho, político muito ocupado, precisa ocultar seus fracassos e “envia” o velho para a irmã Tosca, manequim famosa da alta costura que posa para anúncios de peças íntimas, eventualmente participa de filmes pornô e tem um filho fora de casamento. Tosca consegue evitar ao velho siciliano a evidência de tais fatos, remetendo-o a outro irmão, músico eminente por toda Europa. Quando ambos os homens se encontram, o olhar do eminente músico prestes a realizar uma grande turnê, está prenhe, tal olhar, de segredos inconfessáveis. O velho novamente pergunta por Álvaro, como o fizera a todos os demais; novamente lhe dizem que Álvaro está de férias e em viagem, viagem que ganhara em um sorteio. O velho pensa, com orgulho: “Esse meu filho, além de ser o mais brilhante é, certamente, o que tem mais sorte.”
Vai ao encontro da derradeira filha, Norma. Certa noite, ouve sussurros desta e do marido. Aguçando a audição, o velho se dá conta, ainda que apenas por meias-palavras murmuradas, de que tudo até então não fora mais do que encenações para enganá-lo, a ele, pai: apenas relatos de aparências de vidas, em verdade nem um pouco bem sucedidas, para não dizer totalmente fracassadas.
O velho não suporta as semi-revelações e foge, no meio da noite, com a mala. No caminho de nada, acaba por despertar em um hospital, sobrevivido a si mesmo. Toda a família lhe está à volta, menos Álvaro, que continua em viagem.
Na penúltima cena relevante o pai, já recuperado, almoça com os dois filhos homens (às mulheres, não foi possível a presença). Novamente pergunta por Álvaro, nem um pouco convencido do que ouvira até então, sentindo que lhe ocultam algo importante.
A câmera focaliza, de costas, a figura maciça do velho, maciça e algum tanto fragilizada como rochedo batido por ciclones. Das cadeiras laterais os filhos explicam, enfim, com palavras simultâneas, como em cena ensaiada: “Pai, nós lhe ocultamos isto há meses, não sabíamos como dizer: Álvaro está morto, pai, morreu de solidão, suicidou-se; morreu no mar, ficou no mar.”
A câmera permanece imóvel, a olhar as costas petrificadas do velho, a olhar as imagens petrificadas do mundo. A câmera, igualmente petrificada, não consegue mover-se para olhar o velho nos olhos.
De volta à sua terra, o velho conversa com a mulher, Ângela. Estão ambos ao ar livre e ele lhe diz: “Nossos filhos estão bem, não se preocupe. Estamos todos bem.” A câmera vai se afastando lentamente, enquanto os dedos do velho continuam a acariciar o nome da mulher amada inscrito na lápide, sobre o túmulo no antigo cemitério, diante do mar da Sicília.
Zuleika dos Reis, em 10 de junho de 2010.
O velho aposentado, maciço como antigo rochedo, com os olhos enormes sob os também maciços graus dos óculos, vai carregando, lentamente, a mala e um gradeado com presentes. Entra no trem, acomoda-se, dirige-se ao continente. Na carteira, carrega uma foto da família: ele, a mulher, os cinco filhos, todos caracterizados como personagens, cada um de diferentes óperas, das óperas a mesma de sempre paixão de um senhor siciliano. Orgulhoso, o velho o vai dizendo aos companheiros de viagem, esgotando-lhes a paciência. Esqueço-me,neste momento, do nome de dois dos seus filhos, guardo o de três: Álvaro, Tosca, Norma.
Por uma dessas preferências não justificadas pela razão, reais para além dela, o velho pai chega, primeiro, à cidade onde mora Álvaro. Vai a casa, não o encontra; vai ao trabalho onde o filho é professor universitário e ninguém o conhece nem seu nome consta da relação de professores; telefona várias e várias vezes e permanece embatucado, emudecido diante do mesmo idêntico recado na secretária eletrônica. Amargando os desencontros, decide ir à procura de outro dos filhos. Encontra-o, também à nora e à neta, no entanto, nada flui bem. Este filho, político muito ocupado, precisa ocultar seus fracassos e “envia” o velho para a irmã Tosca, manequim famosa da alta costura que posa para anúncios de peças íntimas, eventualmente participa de filmes pornô e tem um filho fora de casamento. Tosca consegue evitar ao velho siciliano a evidência de tais fatos, remetendo-o a outro irmão, músico eminente por toda Europa. Quando ambos os homens se encontram, o olhar do eminente músico prestes a realizar uma grande turnê, está prenhe, tal olhar, de segredos inconfessáveis. O velho novamente pergunta por Álvaro, como o fizera a todos os demais; novamente lhe dizem que Álvaro está de férias e em viagem, viagem que ganhara em um sorteio. O velho pensa, com orgulho: “Esse meu filho, além de ser o mais brilhante é, certamente, o que tem mais sorte.”
Vai ao encontro da derradeira filha, Norma. Certa noite, ouve sussurros desta e do marido. Aguçando a audição, o velho se dá conta, ainda que apenas por meias-palavras murmuradas, de que tudo até então não fora mais do que encenações para enganá-lo, a ele, pai: apenas relatos de aparências de vidas, em verdade nem um pouco bem sucedidas, para não dizer totalmente fracassadas.
O velho não suporta as semi-revelações e foge, no meio da noite, com a mala. No caminho de nada, acaba por despertar em um hospital, sobrevivido a si mesmo. Toda a família lhe está à volta, menos Álvaro, que continua em viagem.
Na penúltima cena relevante o pai, já recuperado, almoça com os dois filhos homens (às mulheres, não foi possível a presença). Novamente pergunta por Álvaro, nem um pouco convencido do que ouvira até então, sentindo que lhe ocultam algo importante.
A câmera focaliza, de costas, a figura maciça do velho, maciça e algum tanto fragilizada como rochedo batido por ciclones. Das cadeiras laterais os filhos explicam, enfim, com palavras simultâneas, como em cena ensaiada: “Pai, nós lhe ocultamos isto há meses, não sabíamos como dizer: Álvaro está morto, pai, morreu de solidão, suicidou-se; morreu no mar, ficou no mar.”
A câmera permanece imóvel, a olhar as costas petrificadas do velho, a olhar as imagens petrificadas do mundo. A câmera, igualmente petrificada, não consegue mover-se para olhar o velho nos olhos.
De volta à sua terra, o velho conversa com a mulher, Ângela. Estão ambos ao ar livre e ele lhe diz: “Nossos filhos estão bem, não se preocupe. Estamos todos bem.” A câmera vai se afastando lentamente, enquanto os dedos do velho continuam a acariciar o nome da mulher amada inscrito na lápide, sobre o túmulo no antigo cemitério, diante do mar da Sicília.
Zuleika dos Reis, em 10 de junho de 2010.