BRILHO ETERNO DE UMA NOITE SEM LEMBRANÇAS
DISCIPLINA: Psicologia e suas relações com Arte, a Ciência e a Educação
Professora: Isa Trigo
Como esquecer os momentos que marcaram o tempo em que durou um relacionamento sem que, recordando-os na distância da separação, não busquemos fugir da dor? Essa dor de morrer no pensamento do outro, estando ainda vívida no nosso; essa dor de não ser mais amado, estando o amor ainda aceso em nós; essa dor em que "o tecido do seu ser não passa mais inevitavelmente pelo ser do outro?"1
Como aceitar nossa transitoriedade no coração e mente de uma outra pessoa, sem que essa sensação de fugacidade, de efemeridade, de vazio da presença, nos domine e faça do mundo um lugar indiferente e frio?
Como aceitar que longe, sem o cultivar a decisão diária de renovação, deixaremos de existir na memória vívida de quem um dia fez-se matéria de nosso ideal amoroso? E não morrer essa morte da memória, essa morte que é sobretudo isso: "tudo que foi visto, terá sido visto para nada. É o luto daquilo que percebemos."2 Um fim para onde concorrem o silêncio e o ocaso.
Talvez se tivéssemos, nós humanos, as chaves do mito de Orpheu! Mas olhar para trás também é congelar, é ver perdida a amada no próprio inferno de si e sofrer com o que se deixou de ser e ter. Talvez evocando Nietzsche “abençoado sejam os esquecidos, porque tiram o melhor de seus equívocos...”3 achem-se, todos os homens que vagueiam em cada recomeço, um paliativo à dor de recomeçar no jogo das buscas, estando novamente perdido no labirinto do só; sou o que esquece, essa é a desforra aos meus erros; vá: objeto amado.
Talvez, na impossibilidade do esquecimento, do aniquilamento do outro nessa registradora chamada memória, nessa urgência de aceitar que só ao tempo é dado o benefício da cura, fosse possível buscar um artifício mecânico, máquina que pudesse deletar essas lembranças que nos causam dor agora, do apagamento dessa sensação de perda neste instante!
Juntar tudo: fotos, livros dedicados, desenhos, folhas rabiscadas, talheres, copos, peças íntimas, uma camiseta surrada e esquecida no guarda-roupa, e a partir delas ir registrando as lembranças desde o início, catando sinais que deixamos nas trilhas enveredadas das entregas, revivendo datas e segundos e em cada um deles como num último esforço a dor suprema de recordar para o benefício do lenitivo de olvidar...
E a partir daí, a tal máquina fosse apagando os estímulos cerebrais, deletando as lembranças que a cada objeto excita... Até que não sobrasse o menor dos resquícios...
Oras, mas aí cabem alguns poréns! Todo remédio tem contraindicação: se ambos, ele e ela, ou ela e ela, ou ele e ele, após enfrentada a máquina, se reencontrarem, tudo se reiniciará: afinal, não são as afinidades as projeção dos nossos ideais, e a razão do outro preexistir em nós? Não haverá reencontros, sem “novos” primeiros encontros...
Joel e Clementine passaram por tal máquina. Sim! Em filme ela existe. E é sobre as dores da perda e de reencontros, de aceitações do que o outro é: imperfeito ainda que amado, que Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças explora. Pode-se apagar todas as lembranças do outro em nós, ainda assim seremos o que desejamos, o que buscamos, o que idealizamos. Retira-se resquícios do outro, mas restará sempre o o ser coletivo que somos, daí Alexander Pope: "Feliz é o destino da inocente vestal sem culpa, esquecendo do mundo e sendo por ele esquecida, brilho eterno de uma mente sem lembranças, onde toda prece é ouvida, toda graça se alcança."
1. Arruda, Maria Lúcia e Martins, Maria Helena (1993, p. 321) Obs: citação não original, alterada por mim.
2. François Wahl: “Queda”
3. Nietzche: Além do bem e do mal.
FILME: Brilho eterno de uma noite sem lembranças. Jim Carrey, Kate Winslet, Kirsten Dinst, Mark Ruffalo e Elijah Wood. Direção Michel Gondry. Escrito por Charlie Kaufman. USA, 2004.