"Ponte de Espiões" (Bridge of Spies)
"Ponte de Espiões" (Bridge of Spies)
Coisa de 15 anos antes dos eventos retratados em "Ponte de Espiões", o 3º Exército dos EUA, liderado por George Patton, rasgava a Europa num tranco vertiginoso - 12 mil cidades libertadas, 2 mil quilômetros percorridos, 200 mil quilômetros quadrados de território reconquistados, 1,2 milhão de nazistas prisioneiros, 386 mil feridos e 145 mil abatidos. Leia-se soldados uniformizados e armados, e não civis como ocorre hoje no oriente médio. Em resumo, o general de 3 estrelas retirou de combate mais de 1,8 milhão de soldados inimigos. Semanas após a rendição germânica, Patton bateu no peito e em discurso disse o seguinte: "Com o 3º Exército, varreríamos o que restou dos soviéticos".
Não obstante o destino tivesse outros planos, a Sétima Arte, graças aos seus mais altos representantes, oxalá esteja sempre ao nosso alcance, ou para nos mostrar o que teria acontecido, ou meramente o que aconteceu.
De início, Spielberg e sua Máquina do Tempo nos dão Brooklyn, NY, 1957, como seria, sem nenhuma azeitona fora do lugar. Cinema se presta a essas coisas. Viaja-se no tempo, passado, futuro, por momentos torna-se viável a capacidade de acessar qualquer jogo holográfico e experimentá-lo em múltiplos escopos.
Tom Hanks perfaz o incrível verídico sr. Jim Donovan, pai de família e advogado contratado pelo Departamento de Justiça para dar ao espião russo Abel a chance, ou se preferir o direito de ter um julgamento justo. América = democracia = liberdades cívicas. Jim não trabalha para o governo, sua empresa foi contratada para a defesa. Uma labuta inglória, porém patriótica. Abel está a serviço de um estado totalitário e como tal, sanguinário, mas que não deixa de ser a um só tempo sua pátria e uma causa a qual se devotou. Ambas as nações se encontram no teatro da Guerra Fria, palco que oferecia de hora em hora o plausível desfecho de um embate termonuclear. Jim acredita na democracia. Dado instante o juiz lhe diz o óbvio mais ou menos assim: o que acontece nesse julgamento é grão de areia diante do que está por trás. Trata-se de uma guerra entre civilizações.
O britânico dramaturgo ator e diretor Mark Rylance faz o espião Rudolf Abel, uma atuação impecável (merecido Oscar Melhor Ator Coadjuvante) para um papel menor, quase gestual, lacônico, uma massa orgânica com dois olhos de enigmática expressão e uma tranquilidade inquietante. Hanks, três ou quatro vezes pergunta para ele: você não está preocupado? Ele responde: isso ajudaria? Num dos raros diálogos entre ambos com alguma extensão, Abel conta para o advogado certa passagem de sua infância, algo que, rápido como um relâmpago, define a atmosfera civil que o circundava.
A amiga Poetisa Lúcia Constantino, em sua ultima publicação, enseja as seguintes palavras acerca de assunto totalmente diverso do presente. "Nesses tempos do imediatismo, do descartável, da falta de seriedade e perseverança, da falta de coragem, ousadia...". A frase da
Poetisa desemboca na foz do mais nobre sentimento humano - o amor. Algo oculto em Bridge of Spies. Entretanto, a tônica, os laços e a meta que une os dois personagens está descrita nas palavras de Lúcia: perseverança, coragem e ousadia. Abel, o espião, reúne coragem suficiente para não abrir o bico perante o poderio do Tio Sam. O advogado nascido em 1916 e transferido de planeta em 1970, Jim Donovan, igual, com certos acréscimos. Igual pois da noite para o dia tornou-se odiado pelo populacho, afinal ele defendia o inimigo. Ninguém supunha que de fato defendia a constituição de seu país. Abel tem direito a recurso, Jim vai a Suprema Corte. Seus argumentos são colírio para os que defendem a justiça, por mais estranha que ela às vezes pareça. O acréscimo fica por conta da segunda aventura vivida por Hanks, longe dos States, correndo sério risco de vida.
Qualquer comentário adicional sobre o ultra profissionalismo e bom gosto de Spielberg vira folha de manacá na Mata Atlântica. A batuta do maestro é límpida em tudo, seja na caracterização de época, na condução dos personagens, na dinâmica dos planos, realce para a sequência inicial da tocaia dos agentes do FBI, quando se atrapalham numa estação de metrô, e aplausos para a atmosfera da Berlim Oriental semi destruída, (lembranças de Patton...) em pleno 1960 e o levantamento do muro vergonhoso e fatídico.
O roteiro dos irmãos Coen tem um adesivo colado nas entranhas que diz muito tanto sobre o filme como sobre o incrível Jim. Expressa o adesivo: cultura geral. Jim se formou em direito em 1941 e atuou na promotoria em Nuremberg. Pois foi justamente através de Nuremberg que o mundo conheceu e sorveu goela abaixo as filmagens de tratores arrastando milhares de cadáveres nos campos de extermínio nazistas.
Vem daí sua armadura interna contra governos totalitários e o surgimento do caso Rudolf Abel em sua vida é uma forma de lutar pela civilização que defende - a da liberdade. Durante meio filme a câmara de Spileberg repousa entre Nova Iorque e Washington, em tribunais, escritórios, bares, lares, e o que mais apareça. A história narra que Jim teve um encontro secreto com Allen Dulles, veterano chefão da CIA que seria demitido por JFK dentro de instantes, mas até então dava as cartas e solicitou ao quixotesco Hanks que fosse negociar a troca de Abel com o pivô de evento recém ocorrido e mundialmente conhecido - o caso do piloto decaído do U2.
Mais um artigo de cultura geral - Francis Gary Powers e seu super avião abatido pela inteligência vermelha. Isso rendeu matérias mil inclusive na finada revista Machete durante os anos 60.
Outro ponto une os protagonistas - nenhum governo os reconhece, embora ambos estejam dispostos a morrer por eles. Os russos não admitem a existência de Abel e tampouco a CIA reconheceria, caso tivesse naufragado, a existência e o poder de barganha de Jim Donavan na maltrapilha Berlim Oriental.
Hanks/Donavan terá sucesso dobrado, sua ousadia e seu humanitarismo conseguirão uma troca dupla, pois nesse meio tempo um retardado estudante de Yale, fazendo uma tese sobre economia comunista e achando que transitar no meio daquele bando de milicianos esfaimados seria um passeio na praia tornou-se presa fácil a ser jogada num calabouço e destinada ao esquecimento. Mais uma vida em vão em nome de nada.
O advogado não recua um milímetro e exige também a sua soltura.
Não se iludam os que supõem, tragados pelo bueiro midiático, que a atuação de Thomas Jeffrey Hanks tem brilho menor nessa obra de Spielberg. Pertence a ele o veículo que restaura com lustro a saga do Incrível Jim.
Bridge of Spies é um triunfo de cinema inquestionável, e seus ilustres
representantes não terão um vassalo a lhes sussurrar nos ouvidos: cuidado, toda a glória é efêmera.
Isso porque a arte de estirpe, dentre outros, possui nas vísceras o grande trunfo de ser passada adiante.
"Ponte de Espiões" (Bridge of Spies)
Coisa de 15 anos antes dos eventos retratados em "Ponte de Espiões", o 3º Exército dos EUA, liderado por George Patton, rasgava a Europa num tranco vertiginoso - 12 mil cidades libertadas, 2 mil quilômetros percorridos, 200 mil quilômetros quadrados de território reconquistados, 1,2 milhão de nazistas prisioneiros, 386 mil feridos e 145 mil abatidos. Leia-se soldados uniformizados e armados, e não civis como ocorre hoje no oriente médio. Em resumo, o general de 3 estrelas retirou de combate mais de 1,8 milhão de soldados inimigos. Semanas após a rendição germânica, Patton bateu no peito e em discurso disse o seguinte: "Com o 3º Exército, varreríamos o que restou dos soviéticos".
Não obstante o destino tivesse outros planos, a Sétima Arte, graças aos seus mais altos representantes, oxalá esteja sempre ao nosso alcance, ou para nos mostrar o que teria acontecido, ou meramente o que aconteceu.
De início, Spielberg e sua Máquina do Tempo nos dão Brooklyn, NY, 1957, como seria, sem nenhuma azeitona fora do lugar. Cinema se presta a essas coisas. Viaja-se no tempo, passado, futuro, por momentos torna-se viável a capacidade de acessar qualquer jogo holográfico e experimentá-lo em múltiplos escopos.
Tom Hanks perfaz o incrível verídico sr. Jim Donovan, pai de família e advogado contratado pelo Departamento de Justiça para dar ao espião russo Abel a chance, ou se preferir o direito de ter um julgamento justo. América = democracia = liberdades cívicas. Jim não trabalha para o governo, sua empresa foi contratada para a defesa. Uma labuta inglória, porém patriótica. Abel está a serviço de um estado totalitário e como tal, sanguinário, mas que não deixa de ser a um só tempo sua pátria e uma causa a qual se devotou. Ambas as nações se encontram no teatro da Guerra Fria, palco que oferecia de hora em hora o plausível desfecho de um embate termonuclear. Jim acredita na democracia. Dado instante o juiz lhe diz o óbvio mais ou menos assim: o que acontece nesse julgamento é grão de areia diante do que está por trás. Trata-se de uma guerra entre civilizações.
O britânico dramaturgo ator e diretor Mark Rylance faz o espião Rudolf Abel, uma atuação impecável (merecido Oscar Melhor Ator Coadjuvante) para um papel menor, quase gestual, lacônico, uma massa orgânica com dois olhos de enigmática expressão e uma tranquilidade inquietante. Hanks, três ou quatro vezes pergunta para ele: você não está preocupado? Ele responde: isso ajudaria? Num dos raros diálogos entre ambos com alguma extensão, Abel conta para o advogado certa passagem de sua infância, algo que, rápido como um relâmpago, define a atmosfera civil que o circundava.
A amiga Poetisa Lúcia Constantino, em sua ultima publicação, enseja as seguintes palavras acerca de assunto totalmente diverso do presente. "Nesses tempos do imediatismo, do descartável, da falta de seriedade e perseverança, da falta de coragem, ousadia...". A frase da
Poetisa desemboca na foz do mais nobre sentimento humano - o amor. Algo oculto em Bridge of Spies. Entretanto, a tônica, os laços e a meta que une os dois personagens está descrita nas palavras de Lúcia: perseverança, coragem e ousadia. Abel, o espião, reúne coragem suficiente para não abrir o bico perante o poderio do Tio Sam. O advogado nascido em 1916 e transferido de planeta em 1970, Jim Donovan, igual, com certos acréscimos. Igual pois da noite para o dia tornou-se odiado pelo populacho, afinal ele defendia o inimigo. Ninguém supunha que de fato defendia a constituição de seu país. Abel tem direito a recurso, Jim vai a Suprema Corte. Seus argumentos são colírio para os que defendem a justiça, por mais estranha que ela às vezes pareça. O acréscimo fica por conta da segunda aventura vivida por Hanks, longe dos States, correndo sério risco de vida.
Qualquer comentário adicional sobre o ultra profissionalismo e bom gosto de Spielberg vira folha de manacá na Mata Atlântica. A batuta do maestro é límpida em tudo, seja na caracterização de época, na condução dos personagens, na dinâmica dos planos, realce para a sequência inicial da tocaia dos agentes do FBI, quando se atrapalham numa estação de metrô, e aplausos para a atmosfera da Berlim Oriental semi destruída, (lembranças de Patton...) em pleno 1960 e o levantamento do muro vergonhoso e fatídico.
O roteiro dos irmãos Coen tem um adesivo colado nas entranhas que diz muito tanto sobre o filme como sobre o incrível Jim. Expressa o adesivo: cultura geral. Jim se formou em direito em 1941 e atuou na promotoria em Nuremberg. Pois foi justamente através de Nuremberg que o mundo conheceu e sorveu goela abaixo as filmagens de tratores arrastando milhares de cadáveres nos campos de extermínio nazistas.
Vem daí sua armadura interna contra governos totalitários e o surgimento do caso Rudolf Abel em sua vida é uma forma de lutar pela civilização que defende - a da liberdade. Durante meio filme a câmara de Spileberg repousa entre Nova Iorque e Washington, em tribunais, escritórios, bares, lares, e o que mais apareça. A história narra que Jim teve um encontro secreto com Allen Dulles, veterano chefão da CIA que seria demitido por JFK dentro de instantes, mas até então dava as cartas e solicitou ao quixotesco Hanks que fosse negociar a troca de Abel com o pivô de evento recém ocorrido e mundialmente conhecido - o caso do piloto decaído do U2.
Mais um artigo de cultura geral - Francis Gary Powers e seu super avião abatido pela inteligência vermelha. Isso rendeu matérias mil inclusive na finada revista Machete durante os anos 60.
Outro ponto une os protagonistas - nenhum governo os reconhece, embora ambos estejam dispostos a morrer por eles. Os russos não admitem a existência de Abel e tampouco a CIA reconheceria, caso tivesse naufragado, a existência e o poder de barganha de Jim Donavan na maltrapilha Berlim Oriental.
Hanks/Donavan terá sucesso dobrado, sua ousadia e seu humanitarismo conseguirão uma troca dupla, pois nesse meio tempo um retardado estudante de Yale, fazendo uma tese sobre economia comunista e achando que transitar no meio daquele bando de milicianos esfaimados seria um passeio na praia tornou-se presa fácil a ser jogada num calabouço e destinada ao esquecimento. Mais uma vida em vão em nome de nada.
O advogado não recua um milímetro e exige também a sua soltura.
Não se iludam os que supõem, tragados pelo bueiro midiático, que a atuação de Thomas Jeffrey Hanks tem brilho menor nessa obra de Spielberg. Pertence a ele o veículo que restaura com lustro a saga do Incrível Jim.
Bridge of Spies é um triunfo de cinema inquestionável, e seus ilustres
representantes não terão um vassalo a lhes sussurrar nos ouvidos: cuidado, toda a glória é efêmera.
Isso porque a arte de estirpe, dentre outros, possui nas vísceras o grande trunfo de ser passada adiante.