A GAROTA DINAMARQUESA

“O corpo é a prisão da alma”

“O corpo é a prisão da alma”, disse Platão, ao tratar da imortalidade da alma e do acesso ao mundo das ideias (realidade transcendente, inteligível) por oposição – hierárquica – ao mundo das coisas (realidade imanente, sensível e, necessariamente, marcada pela imperfeição). No mito do cocheiro, Platão compara a alma a uma carruagem puxada por dois cavalos (a coragem e os sentimentos). Na metáfora, o corpo humano é a carruagem, a razão é o cocheiro, que o conduz os sentimentos e a coragem (cavalos) através das rédeas (pensamentos).

Ainda que não esteja em questão a imortalidade da alma, mas a harmonia entre o corpo e a alma, no caso de Einar Wegener (Eddie Redmayne), os cavalos (os sentimentos) estão desconectados da carruagem (corpo), porque Einer se sente mulher no corpo de um homem. Esse é o ponto central do filme A Garota Dinamarquesa (EUA - 2015), de Tom Hopper, inspirado no romance homônimo de David Ebershoff e no fato verídico de que Einar Mogens Wegener foi a primeira pessoa no mundo a se submeter à cirurgia de readequação sexual, nos idos de 1920, para se tornar ou dar corpo a Lili Elbe, uma vez que Einar afirma que Lili sempre existiu em seu interior.

Einer é um jovem pintor dinamarquês, casado com o Gerda Wegener (Alicia Vikander), também pintora, que no filme, aquém ou além da vida como ela é, para usar um termo de Nelson Rodrigues, a despeito da angústia e do assombro de descobrir Lili no corpo de Einer, lhe dedica um amor desmedido a partir do qual, além de pintá-la (Lili), em trabalhos que lhe rendem notoriedade e fama, acompanha Einer em todo o processo de investigação clínica de sua mudança comportamental, quando decide assumir no mundo exterior aquela que habitava seu mundo interior, bem como nos procedimentos cirúrgicos.

Se quesitos como a voz e o caminhar de Einer, o piano melódico, o cachorro e o apelo emocional tornam a qualidade do filme discutível, para alguns, a importância de se dar visibilidade ao tema não parece ou não deveria deixar dúvida, eis que é de enorme importância no debate contemporâneo em torno do gênero, que só é o que é depois da década de 70, do século passado, por meio dos esforços de pesquisadoras norte-americanas feministas que usavam a terminologia "gender" para falar das origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e mulheres e das distinções baseadas no sexo, indicando uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”.

De fato, muita gente ainda faz confusão entre a sexualidade e o gênero, mas o gênero, nos termos da construção conceitual já mencionada, rejeita as justificativas biológicas e se torna uma forma de indicar a criação inteiramente social e cultural das ideias sobre as identidades subjetivas e os papéis dos homens e das mulheres. Assim, identidade de gênero não tem, necessariamente, ligação com o sexo anatômico do ser. A identidade de gênero, diversamente, nos coloca novamente em contato com Platão e sua filosofia fundante da cultura dualista ocidental, na qual se vê, dentre outras dualidades, a polaridade das posições ocupadas pelo homem e pela mulher e seus lugares naturais, tão bem delineados por seu discípulo Aristóteles, em cujo contexto não é descabido lembrar o papel da mulher como mera procriadora.

A transexualidade ainda figura no CID-10 (Código internacional de Doenças, elaborado pela OMS) como Transtorno de Identidade de Gênero, donde decorre um movimento mundial no sentido da despatologização das identidades Trans (Stop Trans Pathologization 2012), entendendo-se por transexual a pessoa que possui identificação psicossocial contrária aos seus órgãos genitais externos. Nesse percurso, a França foi o primeiro país do mundo a dar esse passo e o Brasil também está nesta luta.

Do ponto de vista legal, muitas questões ainda precisam ser tratadas, porque, a ausência de legislação específica, por um lado, e a dificuldade que alguns magistrados têm de aplicar o direito a partir dos princípios constitucionais – que, sem qualquer dúvida, são normas jurídicas dotadas de obrigatoriedade – colocam os interessados na sentença judicial que declare a alteração do registro civil, dentre outras questões a serem resolvidas, à mercê de entendimentos subjetivos.

Ao falar de A Garota Dinamarqueza não está em questão, pois, falar apenas do filme, mas expor os fantasmas, individuais e sociais, que vêm à tona, na sala escura e, ainda, a importância de Einar Mogens Wegener para a luta cultural, política e jurídica de pessoas que gostariam de habitar um corpo compatível com sua identidade de gênero. Para encerrar o movimento gravado na película, Tom Hopper convida o expectador a se defrontar com o vale da infância de Einer, que se tornara a marca de sua produção artística, como pintor (como se obrigasse cada um a se perguntar: qual é o meu vale?), e o voo, ao vento, do lenço de pescoço dado por Einar a Gerda... a própria Lili, liberta de seus fantasmas.