"Bird"
"Bird"
Parte desta resenha constitui-se de bem intencionadas orelhadas.
Que eu me lembre, "Bird" é o filme divisor de águas na carreira do multi instrumentista Clint Eastwood. Data:1988. Faturou Cannes nesse ano e acho que levou algum brinde da Academia, no ano seguinte.
O roteiro é de um sujeito chamado Joel Oliansky, currículo curto, que nos anos 70 foi brindado com reminiscências por parte de uns amigos de Parker.
Ah sim, "Bird" narra a história de Charles "Charlie" Parker, Jr., vulgo Charlie Parker, saxofonista de jazz norte americano nascido em 1920 e transladado em 1955.
Tem um lance curioso sobre Charlie Parker. No mínimo dá o que pensar. Vou usar a evolução esportiva no último meio século para desenhar uma analogia. Mark Spits, nadador, quebrou todos os recordes em 1972 e pode apostar que hoje qualquer um que se joga numa piscina olímpica no intuito de competir olimpicamente nada mais rápido do que ele. O tênis carismático de Bjon Borg, pentacampeão de Wimbledon, creio que ficaria no chinelo perto do porrete atômico de Serena Willians, por aí vai, essa anologia teria 500 páginas e a conclusão seria a mesma - evolução, superação, ultrapassagem de marcos, o céu é o limite,
etc.
No caso do saxofone de Parker, decorridos 60 anos após seu passamento, ninguém, até hoje, conseguiu fazer-lhe sombra, e note que neste item nem vou me ater em questões do ampliado leque de foro artístico, ridículo em se tratando de Parker. Fiquemos pois no subuniverso "agilidade", ou se preferir "técnica", ou melhor ainda, virtuosismo com que este músico empunhava seu instrumento.
Pense, de modo geral, se o homem hoje nada mais rápido, executa um surf incrivelmente mais radical do que o praticado por Gerry Lopez em 1973 na mesma Pipeline, ou então se joga de penhascos, esquia em declives impensáveis, voa com um foguetório nas costas ao lado de um 747, escala prédios na raça, sem mencionar o crescimento exponencial da tecnologia, vide a Lei de Moore e o fato inconteste que a eficiência do computador dobra a cada dois anos, ou o já propagado dispositivo, parecido com um celular, pronto para contar em dois minutos a temperatura do corpo, a densidade óssea, a saúde do coração, e outras. Será lançado em breve... Ora, com tudo isso, não parece incrível que ninguém, até hoje, conseguiu tocar um saxofone como Charlie Parker?
(Acho que o Vitor Assis Brasil chegou perto, mas isso é uma orelhada).
Clint Eastwood achou por bem render-lhe um tributo.
Forest Whitaker interpreta o músico. Há um detalhe, embora isso pareça tão preciso quanto dizer que o Corcovado é um detalhe na Guanabara, enfim, a maneira como o Forest empunha o sax e por assim dizer dubla o original é por si absurdamente impecável. Deve ter sido uma trabalheira danada, não é que ele estava dublando um tocador de bumbo da Chechênia ou Cazaquistão, com todo o respeito, desculpe dizer, o mundo é assim, repleto de nuances e degraus, Charlie não chegou onde chegou cochilando num monte palha.
Em dado período de sua vida, antes de aterrissar em Nova Iorque e ministrar aulas para Miles Davis, creio que na sua terra natal, Kansas, depois de perambular com o instrumento e tomar algumas portas na cara, ele se trancou nalgum canto durante 4 anos e estudou de 12 a 15 horas por dia. Isso não está no filme, mas numa entrevista dos anos 50.
No filme Eastwood nos dá uma visão macro que vai e volta no tempo, a música não sai de cena um segundo e provê uma camada fina de melodia como se fosse um verniz temperando os sucessos e as agruras de Parker, agruras não faltam, Parker bebia como uma cabra, era dependente de heroína, sofria de úlceras, cirrose, perseguições, inveja e muita admiração.
A cena em que ele é ovacionado em Paris, no início dos anos 50, a platéia inteira se levanta e lhe atira rosas suscita indagações se comparada com o nosso modernoso mundinho ecstasy eletrônico. Ali em Paris era um trio fazendo cama para o quarto elemento, Charlie Parker de pé
desfiando suas invencionices que culminaram no temeroso Bebop, barrado na Califórnia, onde um figurão proibiu 12 estações de rádio de transmitirem o estilo para os jovens, alegando que seriam desvirtuados se ouvissem. Isso está no filme. Durante sua passagem por L.A. ele pede para a anfitriã parar na porta da casa de Igor Stravinsky, por quem nutria funda admiração. Ele toca a campainha, Igor vai até a soleira e mede aquele desconhecido mal trajado, fecha a porta, Parker sorri e segue a vida.
A atriz Diane Venora, conhecida em seus círculos por interpretar com lisura de brilho peças de Shakespeare faz a memorável mulher de Charlie, Chan Parker. Faturou um Globo de Ouro pelo seu desempenho como a esposa tipo missionária e ciente de ser um pilar de sustentação para um gênio. O tempo todo ela sabia com quem estava lidando.
Eastwood trata da relação dos dois sem uma gota de açúcar a mais ou a menos, ambos tem uma dinâmica que funciona de acordo com a complexa configuração de suas vidas. Quando o marido está numa clínica psiquiátrica por tentativa de suicídio e a diretoria quer ministrar tratamento de choque ao paciente ela recusa e explica ser casada com um homem que necessita de sua criatividade para viver. Ou quando se falam de madrugada, ele numa espelunca, ela em casa, inexiste a perda de tempo em indagações tipo com quem, aonde, que horas volta. Chan apenas pergunta: você está bem?
Foi um casamento sem papel de 5 anos, de 1950 a 1955. Nos créditos finais Eastwood faz questão de exaltar a colaboração inestimável da viúva para a confecção da obra.
"Bird" tem Dizzy Gillespie interpretado por Samuel E. Wright e Michael Zelniker como Red Rodney, amigos numa toada em que se vivia, materialmente dizendo, "da mão para a boca". Ou você tinha uma agenda de shows lacrada, caso de Gillespie, ou era a roleta russa do hoje temos dinheiro, amanhã não se sabe.
São 155 minutos de cinema inteligente sobre um sujeito que em hipótese alguma deveria ser meramente rotulado como um fanfarrão sofisticado. Parker foi um gênio que deixou marca, até hoje sem superação e o trabalho de Forest Whitaker, digno de entrar na história. Aliás, a história sempre merece ser contada, visto que o esquecimento e a interpretação errada e ou desleixada permite lacunas imensas no conhecimento humano e na compreensão de verdades vitais.
"Bird"
Parte desta resenha constitui-se de bem intencionadas orelhadas.
Que eu me lembre, "Bird" é o filme divisor de águas na carreira do multi instrumentista Clint Eastwood. Data:1988. Faturou Cannes nesse ano e acho que levou algum brinde da Academia, no ano seguinte.
O roteiro é de um sujeito chamado Joel Oliansky, currículo curto, que nos anos 70 foi brindado com reminiscências por parte de uns amigos de Parker.
Ah sim, "Bird" narra a história de Charles "Charlie" Parker, Jr., vulgo Charlie Parker, saxofonista de jazz norte americano nascido em 1920 e transladado em 1955.
Tem um lance curioso sobre Charlie Parker. No mínimo dá o que pensar. Vou usar a evolução esportiva no último meio século para desenhar uma analogia. Mark Spits, nadador, quebrou todos os recordes em 1972 e pode apostar que hoje qualquer um que se joga numa piscina olímpica no intuito de competir olimpicamente nada mais rápido do que ele. O tênis carismático de Bjon Borg, pentacampeão de Wimbledon, creio que ficaria no chinelo perto do porrete atômico de Serena Willians, por aí vai, essa anologia teria 500 páginas e a conclusão seria a mesma - evolução, superação, ultrapassagem de marcos, o céu é o limite,
etc.
No caso do saxofone de Parker, decorridos 60 anos após seu passamento, ninguém, até hoje, conseguiu fazer-lhe sombra, e note que neste item nem vou me ater em questões do ampliado leque de foro artístico, ridículo em se tratando de Parker. Fiquemos pois no subuniverso "agilidade", ou se preferir "técnica", ou melhor ainda, virtuosismo com que este músico empunhava seu instrumento.
Pense, de modo geral, se o homem hoje nada mais rápido, executa um surf incrivelmente mais radical do que o praticado por Gerry Lopez em 1973 na mesma Pipeline, ou então se joga de penhascos, esquia em declives impensáveis, voa com um foguetório nas costas ao lado de um 747, escala prédios na raça, sem mencionar o crescimento exponencial da tecnologia, vide a Lei de Moore e o fato inconteste que a eficiência do computador dobra a cada dois anos, ou o já propagado dispositivo, parecido com um celular, pronto para contar em dois minutos a temperatura do corpo, a densidade óssea, a saúde do coração, e outras. Será lançado em breve... Ora, com tudo isso, não parece incrível que ninguém, até hoje, conseguiu tocar um saxofone como Charlie Parker?
(Acho que o Vitor Assis Brasil chegou perto, mas isso é uma orelhada).
Clint Eastwood achou por bem render-lhe um tributo.
Forest Whitaker interpreta o músico. Há um detalhe, embora isso pareça tão preciso quanto dizer que o Corcovado é um detalhe na Guanabara, enfim, a maneira como o Forest empunha o sax e por assim dizer dubla o original é por si absurdamente impecável. Deve ter sido uma trabalheira danada, não é que ele estava dublando um tocador de bumbo da Chechênia ou Cazaquistão, com todo o respeito, desculpe dizer, o mundo é assim, repleto de nuances e degraus, Charlie não chegou onde chegou cochilando num monte palha.
Em dado período de sua vida, antes de aterrissar em Nova Iorque e ministrar aulas para Miles Davis, creio que na sua terra natal, Kansas, depois de perambular com o instrumento e tomar algumas portas na cara, ele se trancou nalgum canto durante 4 anos e estudou de 12 a 15 horas por dia. Isso não está no filme, mas numa entrevista dos anos 50.
No filme Eastwood nos dá uma visão macro que vai e volta no tempo, a música não sai de cena um segundo e provê uma camada fina de melodia como se fosse um verniz temperando os sucessos e as agruras de Parker, agruras não faltam, Parker bebia como uma cabra, era dependente de heroína, sofria de úlceras, cirrose, perseguições, inveja e muita admiração.
A cena em que ele é ovacionado em Paris, no início dos anos 50, a platéia inteira se levanta e lhe atira rosas suscita indagações se comparada com o nosso modernoso mundinho ecstasy eletrônico. Ali em Paris era um trio fazendo cama para o quarto elemento, Charlie Parker de pé
desfiando suas invencionices que culminaram no temeroso Bebop, barrado na Califórnia, onde um figurão proibiu 12 estações de rádio de transmitirem o estilo para os jovens, alegando que seriam desvirtuados se ouvissem. Isso está no filme. Durante sua passagem por L.A. ele pede para a anfitriã parar na porta da casa de Igor Stravinsky, por quem nutria funda admiração. Ele toca a campainha, Igor vai até a soleira e mede aquele desconhecido mal trajado, fecha a porta, Parker sorri e segue a vida.
A atriz Diane Venora, conhecida em seus círculos por interpretar com lisura de brilho peças de Shakespeare faz a memorável mulher de Charlie, Chan Parker. Faturou um Globo de Ouro pelo seu desempenho como a esposa tipo missionária e ciente de ser um pilar de sustentação para um gênio. O tempo todo ela sabia com quem estava lidando.
Eastwood trata da relação dos dois sem uma gota de açúcar a mais ou a menos, ambos tem uma dinâmica que funciona de acordo com a complexa configuração de suas vidas. Quando o marido está numa clínica psiquiátrica por tentativa de suicídio e a diretoria quer ministrar tratamento de choque ao paciente ela recusa e explica ser casada com um homem que necessita de sua criatividade para viver. Ou quando se falam de madrugada, ele numa espelunca, ela em casa, inexiste a perda de tempo em indagações tipo com quem, aonde, que horas volta. Chan apenas pergunta: você está bem?
Foi um casamento sem papel de 5 anos, de 1950 a 1955. Nos créditos finais Eastwood faz questão de exaltar a colaboração inestimável da viúva para a confecção da obra.
"Bird" tem Dizzy Gillespie interpretado por Samuel E. Wright e Michael Zelniker como Red Rodney, amigos numa toada em que se vivia, materialmente dizendo, "da mão para a boca". Ou você tinha uma agenda de shows lacrada, caso de Gillespie, ou era a roleta russa do hoje temos dinheiro, amanhã não se sabe.
São 155 minutos de cinema inteligente sobre um sujeito que em hipótese alguma deveria ser meramente rotulado como um fanfarrão sofisticado. Parker foi um gênio que deixou marca, até hoje sem superação e o trabalho de Forest Whitaker, digno de entrar na história. Aliás, a história sempre merece ser contada, visto que o esquecimento e a interpretação errada e ou desleixada permite lacunas imensas no conhecimento humano e na compreensão de verdades vitais.