"O Veredicto" (The Verdict)

"O Veredicto" (The Verdict)








Tem gente que diz que o filme é muito superior ao livro. Não li o livro, escrito por Barry Reed, cujo histórico assim se resume: lutou na Segunda Guerra, formou-se em direito em 1954 e seguiu essa estrada tendo consolidado sua reputação em negligência médica. No ano de 1980 ele estréia como o autor do livro que, dois anos depois, sairia nas telonas dirigido por Sidney Lumet, roteirizado por David Mamet e estrelado por Paul Newman, Charlotte Rampling, Jack Warden, James Mason, etc. Biscoitos finos numa época em que cinema formava mentes.

Mentes e corações, sendo que neste último item peço auxílio a um dos iluminados do séc. XX, sr. Erich Fromm, que na página 03 do seu livro "A Arte de Amar" nos conta o seguinte: "Nas últimas gerações o conceito de amor romântico tornou-se quase universal no Ocidente. Nos Estados Unidos, embora não estejam inteiramente ausentes considerações de natureza convencional, as pessoas buscam em grande medida o amor romântico, almejam viver a experiência pessoal do amor, que pode então resultar no casamento". Fromm escreveu isso em 1953 e mesmo sem colocar qualquer menção ao cinema a presença do mesmo é pra lá de tangível.

Bem, "O Veredicto" escasseia amor romântico, mas reúne uma dose considerável de amor fraterno, também conhecido noutros becos e salvo engano sublinhado pelo próprio Fromm como amor incondicional.

A trama acontece em 1980, sendo resultado de uma perfídia ocorrida em 76. Uma jovem mãe vai dar a luz e ocorre um erro lamentável por parte dos obstetras. Ela entra em coma e assim permanece por dois pares de anos, até cair na vida do advogado Frank Galvin (Newman).

Efetuando uma pausa para uma pequena exposição do ator e do personagem, este último fez tudo certo, daí veio a encruzilhada da vida - formou-se em direito com distinção, casou com uma bonitona e passou a advogar na grande empresa do sogro, então descobre uma maracutaia não condizente com seu barômetro interno relativo a honradez, bateu de frente com tubarões, armaram uma eficaz cilada pra ele que numa tacada viu-se sem esposa, emprego e grana. Sobrou a garrafa.

Este é o grisalho Frank Galvin, Sidney Lumet abre o filme com o protagonista jogando fliperama no que se entende por "pub", tomando umas e outras.

O ator Paul Newman tinha 57 anos na época. Desencarnou em 2008 com grandes prêmios: Oscar de Melhor Ator pela obra "A cor do dinheiro", Oscar honorário pelo conjunto de seu trabalho, Prêmio Jean Hersholt por Ações Humanitárias e em três filmes diferentes levou o BAFTA, Berlim e Cannes como Melhor Ator. Os franceses tiraram o chapéu por sua performance em The Long Hot Summer, 1958.

Apesar de ser um filme dito de tribunais, Lumet climatiza um bom bocado com o decadente Galvin distribuindo cartões em velórios, sendo expulso de alguns, cambaleando pelo escritório, tornando aos bares, a vida com uma configuração triste salva por raros momentos de humor. Dado instante ele conta uma seleta anedota para a minguada platéia do pub: um sujeito me contou que há um bar no centro de Boston que, por 50 centavos de dólar você bebe o quanto quiser, come até se fartar e ainda ganha uma transa de graça no quartinho dos fundos. Uau, e você já esteve lá? Não, mas minha irmã foi....

Jack Warden, o incansável coadjuvante, carismático ao extremo, com uma penca de filmes na mochila, desde "From here to eternity", passando pelo colosso "Todos os homens do presidente" e seguindo pelo tempo a fora, partiu em 2006, aqui ele é o braço direito de Newman, lhe dá conselhos, faz massagem (sem conotação sexual), pesquisa casos, adverte, é ele quem traz a irmã da vítima em coma, potencial cliente para o advogado plasmar uma barbada. O hospital onde se deu a barbeiragem médica chama-se St. Catherine Labouré - um dos pilares da sociedade bostoniana - quer fazer um desses acordos sem demora onde tudo mundo sai ganhando e ninguém menciona que dois médicos gabaritados mandaram para o mundo dos vegetais uma vida promissora.

O ator Paul Newman mostra que a arte da representação é formada por gotas de orvalho e não apenas por falas estridentes como pretendem algumas escolas. Na cena em que ele se encontra com o juiz e o advogado adversário, James Mason, bem sucedido, poderoso, refinado, arguto, ali Newman é um pé de chinelo com a vida destroçada, aparentemente à mercê de qualquer força que se interponha em seu caminho. Ambos querem que ele faça o acordo. É então o momento em que o ator olha para ambos, sem desafio, sem bravata, a junção de sua entonação e seu olhar são artigos de velha escola. Ele simplesmente diz: as coisas mudam.

Nesse nosso Brasil 2015 casos como o erro médico relatado em The Verdict pululam como moscas em açougue, onde não apenas os médicos mas todo um Estado dá as costas aos fracos. Quem irá salvá-los? Na concepção de Barry Reed, um advogado bêbado, lutando sem estrutura nenhuma contra o Establishment.

O personagem vivido por Newman, conclusão talvez ingênua, talvez não, recusou um terço, parte que lhe cabia dentro dos 210.000 dólares oferecidos pela defesa, quantia considerável para a época e para a cultura em questão, (hoje dinheiro de pinga de acordo com os amiguinhos da Petrobras) pelo mesmo sentido de honra que passara uma rasteira em sua vida, alguns anos antes, e que num momento de fragilidade levou-o a buscar refúgio no álcool. Cem por cento das sinopses sobre "O Veredicto" exibem a tarja "advogado alcoólatra", etc., etc. Calma lá. Os sintomas apresentados pelo herói nesse viés estão aquém da doença crônica e incurável, rarissimamente reportada nas telas com veracidade. Ou bem Hollywood monta uma escatologia do escambal, vide "Despedida em Las Vegas", ou um drops açucarado tipo "28 dias". Foram-se os tempos de "Farrapo Humano" e na pseudo modernidade resta o acertado "Quando um homem ama uma mulher". O advogado fim de linha Newman/Galvin se apresenta no início da trama como um Heavy Drunker, isso sim, diferente do alcoólatra, já que esta doença tem característica inconfundível - ela nunca melhora, só piora, e tolhe o livre arbítrio da vítima. Mesmo com a moral grudada como um chiclete na sola do sapato, no desenrolar da trama o protagonista vai abrindo mão da muleta etílica. Alcoólatras não tem essa opção. Além do que, o personagem vivido por Newman, numa visão New Age, é movido pelo amor fraterno descrito por Fromm, que, a propósito, quando abordou o tema, os hippies usavam fraldas.

Testemunhas somem ou são escarnecidas, Charlotte não era sequer um amor romântico ou mesmo erótico, apenas uma contratada para espionar os passos do ébrio Quixote, Mason coloca a mídia a seu favor e conta com um batalhão de jovens afiados nas sutilezas da lei, tudo isso soa um tanto parvo e velhusco face a passagem do tempo, afinal são 35 anos, inda assim se faz documento e em seu discurso final para os jurados Newman dirá: "Boa parte do tempo estamos perdidos. Pedimos a Deus uma orientação. Não há justiça. O rico ganha, o pobre é impotente. Ficamos cansados de ouvir as pessoas mentirem. E começamos a morrer. Ficamos um pouco amortecidos, nós nos vemos como vítimas. E nos tornamos vítimas. Nos tornamos fracos".

Houve época em que a Indústria Californiana colocava em campo, a cada temporada, várias "Seleções de 70" simultaneamente. Apesar de "O Veredicto" não ter levado nem um abacate na festa do Oscar, as assinaturas de sua confecção vem de estirpes sem sofismas, David Mamet é um roteirista de sucessos sucessivos há décadas e Sidney Lumet um diretor praticamente referência nesta arte. O trabalho termina com Newman ouvindo o telefone tocar, bebericando café, os pés sobre a mesa. Ele não atende.

No meio do filme confidencia para Charlotte porque se envolveu nesta causa:

- Alguém precisa defender os fracos. O tribunal é para isso. Não para fazer justiça, mas para oferecer uma chance de justiça.



 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 01/07/2015
Reeditado em 13/07/2020
Código do texto: T5296154
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