NOÉ
A estória deve ter sido ouvida durante a minha infância algumas vezes, todavia, não foi necessário muito amadurecimento e senso crítico posterior para relega-la ao devido contexto metafórico e cheio de simbolismos, como existem inúmeros outros, de entremeio ao extenso conteúdo da Bíblia.
Fã irredimível de Russell Crowe, todavia, ao ler ano passado n'algum canal de entretenimento na web que ele se via, com aquela barba estranha, às voltas com a versão para o cinema do legendário Noé, protagonizando o personagem, confesso que, por instinto, torci o nariz. Algo não me soou bem; e hoje, quando afinal me dignei a honrar o trabalho do ator favorito num dos cinemas do Rio de Janeiro, acompanhada de meus filhos, infelizmente tive confirmado o meu faro - o mal pressentimento, ao saber que um ator de tamanha magnitude, voluntariamente, resolvera desperdiçar o seu talento artístico com algo tão absolutamente formatado, quanto este ícone do Velho Testamento.
Filme enorme - calculo que se aproxime de uma tres horas de exibição! E assistindo-o, pude também compreender porque o Papa Francisco declinou, elegantemente, de assisti-lo e dabate-lo, como o queria o ator principal!
De fato, caro leitor, se se der ao trabalho de também pagar o seu ingresso para comprovar por si mesmo, deverá chegar à mesma conclusão: que seria coisa forte se esperar que o representante maior do Vaticano se desse ao trabalho de emprestar sua atenção a um filme sobre Noé, contudo, produzido no melhor estilo de ficção científica - arrisco a dizer, lançando-se mão, à farta, de tais elementos na trama, para talvez se evitar que adormeça a platéia, na metade da exibição, por entre sonolentos diálogos metafóricos da família de Noé com Enoch, passagens familares excessivamente calcadas em pareceres sobre a personalidade de cada um de seus filhos, primeiro durante a infância, depois na sua juventude; descrições de nomes de gerações sucessivas; da criação do mundo; mais de uma vez, a hilária serpente e as maçãs; sonhos proféticos; mais descrições de trechos bíblicos cheios de simbolismo confuso, e vai por aí afora!...
É verdadeiramente estarrecedor que, de entremeio à algaravia embrulhada da exibição literal de fatos da narrativa bíblica acerca da história de Noé, o telespectador seja obrigado a digerir a atmosfera estranha imposta pelo diretor, Darren Aronofsky, incluindo guerreiros do mal, vilões, comandados pela linhagem nefasta de Caim, agindo contra a missão tida como "divina" de Noé, em cenas que, repetida e inevitavelmente, nos transportam à Terra Média da saga O Senhor dos Anéis, combatendo - sim! - monstros de pedra!
Estes seres, no contexto, são seres de luz "decaídos" das profundezas celestes, e revestidos de pedras e rochas, que vem para auxiliar o personagem principal e sua família a concluir com sucesso o resgate dos animais dentro de sua monumental arca, quando enfim viesse o dilúvio, desencadeado pelo Criador para extinguir a humanidade nociva e responsável por todo o mal existente na história, desde o mítico episódio de Adão.
Não é, pois, um despropósito, ante tamanha mostra de licenciosidade contextual na releitura deste obscuro capítulo bíblico, que o filme tenha sido proibido em mais de um país de perfil religioso ortodoxo, ou fundamentalista! D'onde se justifica, caro Russell Crowe, a minha premonição inicial de que, comprovadamente, o seu maior trunfo ainda reside naquela representação mais pragmática, muito mais convincente, do general romano que nos legou o legendário mote cinematográfico: "my name is Gladiator!"
Salva-se, talvez, na trama, como único fator positivo, o peso filosófico conferido pelo diretor à importância dos valores ligados à compaixão, exemplificada por Noé no momento em que desperta do seu irritante delírio de cumprir a todo custo a suposta "vontade divina", ao desistir de matar, a sangue frio, suas duas netas gêmeas, recém nascidas, sob a alegação de que elas seriam a continuação não autorizada da maldade humana que queria exterminar da face da Terra.
Sugiro, portanto, nesta análise bastante sintética, que o apreciador de cinema, ou das versões mais tradicionais dos capítulos bíblicos, vá ver o filme, o mais possível, despojado de preconceitos para com tais releituras arrojadas das passagens religiosas, por parte desta escola de diretores liberais. Ou correrá o risco de, na melhor das hipóteses, deixar o cinema cansado e enfadado - na pior, ainda irritado por ter gasto o seu dinheiro com um entretenimento que, em termos de conteúdo, não acrescenta absolutamente nada, e certamente estará esquecido já na semana seguinte.
Ao ator preferido, protesto votos fervorosos para que não mais se meta em semelhante furada.