4 MESES 3 SEMANAS E 2 DIAS


     Nota do Site: 5/ 5


     Atenção! Contém spoilers!

    
     Iniciado em 2003 com filmes que desafiavam a percepção do espectador com longas compostos de ritmo e narrativa contemplativos e naturalistas usadas para registrar momentos particulares de seus personagens como se fossem registros documentais, o novo cinema romeno, a partir de longas como A Leste de Bucareste e A Morte do Senhor Lazarescu deram o pontapé inicial para o movimento cinematográfico que, dentre outras coisas, revisitava o passado recente de seu país de origem ao ambientar seus filmes nos últimos anos da ditadura de Nicolau Cerseascu. Porém, a grande obra-prima desse movimento foi, sem dúvida, o premiado 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, filme dirigido por Cristian Mungiu que, contando a história de duas colegas de faculdade, Otília (Anamaria Marinca) e Gabitza (Laura Vassiliu), tentando conseguir um hotel para que a mais frágil delas, Gabitza, pudesse abortar, tendo que contar, para isso, com a ‘ajuda’ do ‘médico’ conhecido como Sr. Bebe (Vlad Ivanov). Porém, devido à negligência de Gabitza, o plano não sai como o esperado e o Sr. Bebe exige mais dinheiro para a operação de aborto.
 
     E é basicamente isso. Adotando uma abordagem naturalista que, composta por uma fotografia de cores frias e enquadramentos fixos em boa parte do tempo, salvo os momentos em que Mungiu e Mutu seguem Otília pelas ruas de Bucareste, somos informados aos poucos sobre do que se trata o filme. Vejamos por exemplo o início. Fixando sua câmera no dormitório da faculdade onde Otília e Gabitza moram, vemos as duas se preparando para fazer algo. Enquanto Gabitza se arruma, Otília anda pelos corredores do dormitório atrás de cigarros e outros itens, sempre acompanhada pela câmera onipresente de Mutu. Logo após essa introdução, que por definição está à margem da cartilha hollywoodiana, vemos Otília visitando hotéis a fim de alugar um quarto. Após descobrir que a reserva feita em um deles foi ignorada pelos funcionários, Otília consegue outro e é nesse ponto que a trama parece ganhar um conflito.
 
     Ledo engano. Na verdade até a metade da trama a história sequer tinha apresentado um conflito central, numa total aversão à convenção estabelecida de que um filme deva ter três atos objetivamente definidos, separadas por dois pontos de virada bem estabelecidos, o que nos leva imediatamente ao desconforto justamente por estarmos acompanhando uma história basicamente contemplativa que acompanha uma personagem à lugar nenhum, ao que parece. Contudo, no exato momento em que Otília se encontra com Sr. Bebe, num ponto de taxi previamente definido, é que passamos a entender a real situação em desenvolvimento. Então, enquanto os três personagens encontram-se no hotel com o Sr. Bebe, ficamos sabendo do que se trata o filme: um aborto.
 
     E é justamente esse ponto do filme que destaco como o ápice central da trama: conduzindo a conversa com calma e num tom superior, Mungiu estabelece o desconforto, incerteza e o constrangimento que aquele encontro implica na vida de todos, concebendo um plano fixo com pequeníssimas oscilações para observar o desenrolar da conversa. E é então que os atores não decepcionam. Vlad Ivanov, por exemplo, mereceria ser indicado ao Oscar somente por essa longa cena, sobretudo pelo ritmo com que ele conduz a conversa e as conseqüências desta. Aparentando uma calma assustadora em sua cautela e racionalidade, ele inicia a conversa questionando as personagens – sobretudo Gabitza – pela negligência com que aquele ato foi preparado, alertando para as conseqüências que aquela irresponsabilidade possa ter para todos ali e, com uma voz e gesticulação sempre moderados, Ivanov praticamente constrange às duas amigas ali, adotando um tom que se assemelha à um sermão e que chama atenção para o metodismo com que ele desenvolve os procedimentos para o aborto de Gabitza. E se Ivanov brilha em sua composição, Laura Vassiliu demonstra toda a fragilidade e ignorância de sua personagem ao demonstrar não saber lidar com as censuras de Bebe, adotando um tom vacilante em sua fala, que expõe ainda mais suas falhas. E Otília (Marinca, a protagonista inquestionável do projeto) encontra em seus silêncios e pequenas intromissões na fala de Bebe a maneira com que ela possa amenizar a irresponsabilidade da amiga Gabitza.
 
     E se após esse brilhante momento quiséssemos esperar alguma coisa a mais desse filmes, em termos de ação, certamente perderíamos todas as nossas fichas, pois não é a proposta desse projeto entreter, mas desconfortar. O que comprova a seqüência, passada logo após a cena do aborto, quando Otília, encontrando-se na casa de seu namorado para celebrar o aniversário da sogra, praticamente não consegue interagir com os convidados que, conversando sobre inúmeras coisas ao seu redor, parecem não perceber que a protagonista está alheia a tudo aquilo. E aqui mais uma vez a metodologia empregada por Mungiu e Mutu mostra-se bem-sucedida.

     Enquadrando Otília ao centro da mesa, num plano fixo, vemos seu desconforto e a interação dos personagens ao redor e, com nossas atenções voltadas às personagens, compartilhamos seu desconforto por sabermos o que custa à ela estar ali e, neste sentido, pouco importa a nós o que falam os coadjuvantes ao redor. E se esse momento constrangedor já seria suficiente, Mungiu ainda traz uma dolorosa conversa entre Otília e seu namorado, cujo conteúdo diz muito sobre os dois e não ajuda a trazer um pouco mais de conforto à protagonista que, de quebra, ainda é obrigada a lidar com o feto abortado de sua tola e infantil amiga, incapaz de um ato autônomo.

     E nesse momento, quando Otília vê-se obrigada a terminar com aquele ato, a acompanhamos uma última vez pelas ruas de Bucareste enquanto procura um lugar onde ela possa se livrar do feto. E quando Otília, após se encontrar no restaurante do hotel com sua amiga e pedi-la para não conversarem mais sobre aquele assunto, percebemos o quanto aquele dia foi desgastante e sofrível. E a sensação que temos, quando começam a descer os créditos finais, é de que voltamos no tempo (o filme é ambientado em 1987) e acompanhamos um documentário sobre a história de duas amigas tendo que enfrentar um dilema moral difícil de ser enfrentado. E depois de 109 minutos de pura angústia e desconforto, a sensação que temos é que as vidas daquelas duas se fossem pessoas reais, seriam merecedoras de pena e compaixão, pois é impossível não pensar assim dadas àquelas condições.

     E mesmo que em alguns momentos do filme somos levados a pensar um pouco nessa direção devido à algumas pistas deixadas no filme (Otília pegando uma faca da valise de Sr. Bebe e o próprio personagem esquecendo seu documento na recepção do hotel, brincando com nossa expectativa), o fato é que aquele ambiente, predominado por uma burocracia ineficiente e economia depauperada (alguns itens só são possíveis graças ao comércio ilegal e os bairros operários tem aspecto miserável), e registrados em segundo plano pelo diretor de fotografia Oleg Mutu, trazem um retrato da Romênia que dizem muito do período, sobretudo por trazer seus personagens imersos num ambiente anônimo e sem qualquer glamour. E é por esse motivo que 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias é uma obra-prima do cinema romeno!
Khemerson Macedo
Enviado por Khemerson Macedo em 25/02/2014
Reeditado em 03/03/2014
Código do texto: T4706262
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