OS MISERÁVEIS


     Nota do Site: 3/ 5

     
     Das várias obras-primas da literatura ocidental, Os Miseráveis, de Victor Hugo talvez seja aquela que mais releituras teve para o teatro, TV e o cinema. A história gira em torno de Jean Valjean, que encontra-se preso sob a acusação de roubo. Perseguido pelo temível inspetor Javert, Valjean enfrenta as piores condições possíveis executando trabalhos forçados sob a implacável vigilância do inspetor. Assim, ao receber de Javert a tão sonhada liberdade condicional, Valjean mesmo sofrendo com o escárnio das pessoas, tem a possibilidade de redenção ao conhecer um gentil Monsenhor que o acolhe dando-lhe abrigo e comida e perdoando-o depois que este rouba-lhe a preciosa prataria do lugar, salvando-o da prisão e ainda permitindo-o levá-los e refazendo sua vida com a venda dessas preciosas peças. Assim, abandonando sua antiga identidade e tornando-se um respeitável empresário e prefeito de uma cidadezinha nos arredores de Paris, onde conhece Fantine, sensibilizando-se com sua situação e comprometendo-se em criar sua filha. E tudo isso sob a sombra da perseguição de Javert.
     Abrindo seu filme já de maneira grandiosa, Tom Hooper e seus roteiristas não demoram muito em nos apresentar ao protagonista que junto ao seu grupo de condenados executa a tarefa de “arrastar” por meio de cordas um navio num cais, observando Javert no alto, dominante, em contra-plongé. Na cena seguinte, o antagonismo entre os dois é estabelecido ao vermos Javert “solicitando” de Valjean um esforço extra, a fim de mostrar a todos ali que ele, Javert, é mesmo “do mau”.

     Adaptado a partir de uma montagem da Broadway – e não a partir do texto original de Hugo – Os Miseráveis é claramente episódico, onde a transição entre uma cena a outra é feita a partir de elipses abruptas que simplesmente nos colocam em outros cenários sem o menor traço de fluidez ou sutileza, castigando o desenvolvimento narrativo em prol dos números musicais que vão se amontoando, um exemplo claro de que a montagem do filme não conseguiu se desvencilhar de sua origem teatral. Além do mais, as cenas envolvendo Helena Borham Carter e Sacha Baron Cohen não funcionam pois, caricatos a níveis pastelões, quase prejudicam o filme em sua totalidade, investindo num humor inadequado e destoante, podendo perfeitamente terem ficado de fora do corte final da montagem.

     Esta irregular montagem também prejudica o próprio protagonista toda vez que sai de cena para dar lugar à várias sequências alheias à sua história principal, sobretudo nas cenas passadas em 1835, esgotando seu apelo dramático e convertendo-o num mero jogo de gato e rato entre ele e Javert, em certo momento. Mesmo assim, a composição de Hugh Jackman para o personagem sempre se beneficia nos momentos mais intimistas, sobretudo àquelas envolvendo certos questionamentos acerca de algumas atitudes que ele deva tomar para não ser pego e, o mais tocante, não prejudicar àqueles que dependem de sua proteção.

     Em relação à Javert, Russel Crowe atravessa o filme usando a mesma expressão facial de indiferença que o prejudica sobretudo nos momentos em que, a rigor, o personagem deveria mostrar sua complexidade (como no momento em que ele observa um garotinho morto). Assim, para nós, ele é um mero ator de carreira espetacular interpretando burocraticamente neste filme. E desta forma, seu último ato não consegue atingir a catarse necessária, mostrando-se apenas anticlimática.

     Quanto à Anne Hataway, esta com certeza ganhou o Oscar por seus esforços como Fantine por surgir feia, magra, banguela e chorosa, do jeitinho que a Academia gosta para ser premiada, o que não esconde o fato de Fantine não passar de uma maniqueísta personagem cuja intenção era apenas nos fazer ter pena dela. E a sequência em que a moça canta I dreamed a dream escancara essa unidimensionalidade ao mostrá-la com uma expressão digna de uma protagonista mexicana. E sinceramente eu não entendo por que Hooper resolveu trazer várias prostitutas maquiadas exageradamente, já que aquele padrão destoa do restante do filme, servindo apenas para tentar nos passar uma sensação desnecessária de pesadelo.

     Mas se Hooper e seus roteiristas falham na composição de Fantine, eles acertam em cheio na tocante Eponine que, apaixonada por Marius, observa-o se apaixonar por Cosette, esmerando-se mesmo assim em aproximar os dois jovens apaixonados. Porém, naquela que é a mais eficaz sequência emocional do longa, vemos Marius e Cosette trocando juras de amor enquanto Eponine, é vista no fundo do quadro e coberta por uma melancólica penumbra, enquanto sofre por seu amor não correspondido. E se ela omite uma importante informação que permitiria a Marius e Cosette ficarem juntas, é no seu sacrifício final que a jovem encontra a redenção e o perdão.

     E como já ficou claro neste texto, os melhores momentos d’Os Miseráveis são situados em 1835, enriquecendo um filme tão prejudicado por seus equívocos narrativos e interpretativos. E são nos momentos musicais solo (como a belíssima On my own) que, destoando do restante da trilha sonora grandiloquente do filme, dão o devido tom intimista que nos permite reconectarmos com os dramas dos personagens. E todos aqueles momentos em que certos personagens cantam ao mesmo sempre funcionam perfeitamente pois salientam de forma econômica o estado de espírito destes, atingindo o clímax com a fabulosa One day more.

     Esta sequência citada acima, aliás, funciona tão bem que quase nos leva a esquecer seus inúmeros equívocos narrativos, mas, em se tratando de um musical, Os Miseráveis acaba tendo um bom resultado ao amarar satisfatoriamente suas narrativas. E ao trazer Valjean, velho e alquebrado, esperando pelo fim inevitável, o filme encerra-se como uma nota agridoce ao resolver o arco dramático deste personagem de forma sensata e com uma pontinha de melancolia que serve para enriquecer a história de superação e redenção deste clássico da literatura ocidental.
Khemerson Macedo
Enviado por Khemerson Macedo em 22/02/2014
Reeditado em 03/03/2014
Código do texto: T4701296
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