Menina Má.Com, um retrato do nosso tempo
Creio que seja correto dizer que é característica dos grandes artistas retratar com maestria o tempo histórico em que vivem. Hard Candy é simples, sem grandes artifícios embora visualmente de bom gosto, a primeira vista pode parecer mais um filme de terror adolescente, com muito sangue, sustos e gritos, mas não é. Soa bastante realista e funciona por força de um roteiro irretocável e de interpretações igualmente corretas. Trata-se de um dos mais perfeitos retratos do nosso tempo, uma obra de arte nua e crua dirigida pelo novato David Slave que, com esta produção, estréia no mundo dos longa metragens.
Embora alguns possam considerar como improváveis certas seqüências, a essência dos personagens acaba se impondo. O filme conta a história de duas pessoas que se conheceram pela Internet, em salas de bate-papo. Elas conversam, brincam com tiradas sensuais, decidem se conhecer pessoalmente e marcam um encontro em uma lanchonete. Nada de estranho, não fosse o fato dela ser uma menina de 14 anos (Hayley Starks, Ellen Page de X-Men 3) e ele já ter passado dos trinta (Jeff Kohlver, Patrick Wilson de Fantasma da Ópera). Enquanto ela parece uma mocinha doce, que tem os interesses normais de uma adolescente, ele é um fotógrafo bonitão e bem sucedido, dono de um belo carro, de uma bela casa. Pessoalmente o clima entre eles não muda e o encontro na lanchonete acaba sendo esticado até a casa dele. E é aí que a história diz a que veio e que o retrato se concretiza. Seria Hayley exatamente o que Jeff imaginou?
Em tempos de Internet, de alguma forma, muitos viram na rede uma maneira de dar vazão à suas fantasias e projetar nos outros suas próprias esperanças ou patologias. Tornou-se um chavão dizer que pela rede se pode "conhecer os pensamentos e verdadeira alma do outro". Infelizmente, na realidade não é tão simples assim. Diz a regra básica da Comunicação que o emissor transmite uma mensagem que precisa ser decodificada pelo destinatário. Quanto pode existir de objetividade do emissor e quanto pode existir de imaginação do destinatário na interpretação de uma única frase projetada em um ambiente virtual? Poucos pensam nisso. Justamente quando acreditamos estar conhecendo a verdadeira alma do outro é que podemos ser enganados pelos anseios mais profundos da nossa própria alma, o que não é difícil de acontecer em tempos de informação a ritmo acelerado, quando tudo se sobrepõe com pouco tempo para assimilação. E quando isso acontece e chega a hora de acordar, a sensação de despertar de um sonho e não ter onde colocar os pés é inevitável. O bater de frente consigo mesmo e com a própria ilusão é psicologicamente desestruturante.
Mas essa é apenas uma face de Hard Candy. Vivemos em um tempo onde os limites entre infância, adolescência e idade adulta são cada vez menos respeitados. As considerações a cada fase da vida, cada vez mais, desaparecem em um ambiente onde tudo é permitido e tudo parece normal. Em meio a essa suposta normalidade, a crueldade fica cada vez mais banalizada e se cai em uma armadilha perversa, pois não há salvação possível quando se quer castigar a crueldade com mais crueldade, como se uma desculpasse a outra. E o pior é ver maldade disfarçada de justiça, imaturidade travestida de superioridade.
Fugindo do atual contexto histórico, o que ocorre aqui é o embate entre a pedofilia e a psicopatia. Olhando por esse lado parece assustador e é mesmo! Uma das características dos psicopatas é a capacidade de perturbar profundamente o equilíbrio psicológico de outros através de mentiras, manipulações e coação. Assim conseguem minar a resistência do outro e fazer com que se sinta culpado por algo que talvez sequer exista. Psicopatas não têm capacidade de julgamento moral, portanto pena ou empatia é algo alheio a eles. No filme não fica comprovado a pedofilia, mas a psicopatia é inegável. E é difícil não sentir simpatia por quem fica em desvantagem, mesmo sabendo que pode ser um lobo mau e não exatamente uma pobre vítima. A dúvida sobre a condição de Jeff é um recurso para fazer pensar e deixar o filme grudado na cabeça de quem se aventurou a assistí-lo.
As últimas cenas lembram muito “O Silêncio dos Inocentes” e deixam a mensagem: a Internet pede os mesmo cuidados que se deve tomar ao caminhar por uma rua deserta e escura, ainda mais porque se deve tomar cuidado com as ilusões do próprio eu desconhecido.
Título Original: Hard Candy
Produção: EUA 2005, com lançamento em 2006
Direção: David Slade
Roteiro: Brian Nelson
Elenco: Ellen Page (Hayley Starks), Patrick Wilson (Jeff Kohlver)