A fabulosa Mary Poppins

A FABULOSA MARY POPPINS
Miguel Carqueija

O lançamento de “Mary Poppins” em 1964 foi a prova cabal de que Walt Disney não estava decadente e, longe disso, sua genialidade mostrava-se mais aguçada do que nunca. De fato, “Mary Poppins” é um filme perfeito, como poucos foram feitos em todas as épocas do cinema.
Com 139 minutos de duração, esta fantasia musical parcialmente em desenho animado baseia-se em célebre criação da escritora inglesa Pamela Travers (conhecida como P. L. Travers). Mary Poppins aparece em oito livros. A adaptação cinematográfica da babá-fada foi extremamente feliz, resultando numa obra alegre, esfuziante, sensível, bem interpretada, musicada e fotografada, repleta de significado. Basicamente “Mary Poppins” é uma linda mensagem de amor e valores de família: trata da atenção que os pais devem dar aos filhos.
A película nos transporta para a Londres de 1910, portanto nos tempos relativamente tranqüilos que antecederam a Primeira Grande Guerra. Ficamos conhecendo a família do Senhor George W. Banks (David Tomlinson), um banqueiro como o próprio nome indica, homem sistemático e austero, que dá pouca atenção aos filhos, as crianças Jane (Karen Dotrice) e Michael (Matthew Garber). Para Banks a casa deve ser um modelo de ordem sob seu rígido controle, e as crianças devem ser cuidadas por uma babá severa e autoritária. Já a mãe, Winifred, embora mais liberal com os filhos, também lhes dá pouca atenção, ocupada em passeatas das sufragistas, então muito em voga na Inglaterra.
Como as duas crianças pelo fim das contas sabem se defender de algum jeito da caretice das babás, e todas vão embora (a última, Katie, interpretada por Elsa Lanchester, retira-se indignada), o Sr. Banks resolve ele próprio anunciar para conseguir uma substituta, com todo o carrancismo possível. Sem que ele possa imaginar, porém, o seu lar já está visado por uma criatura mágica, que, muito elegante, faz a sua maquiagem numa nuvem. Enquanto isso o jovem faz-tudo Bert (Dick van Dyke), sentindo o vento mudar, percebe que a sua amiga Mary Poppins (Julie Andrews, em sua estréia no cinema) está chegando e coisas extraordinárias vão acontecer.
Em “Mary Poppins” perpassa uma magia, em encantamento, que permanece após quase 50 anos do lançamento original. A própria música, composta pelos irmãos Richard e Robert Sherman, é envolvente e entusiasmante. A explosiva “Supercalifragilist-expialidocious” (uma palavra mágica), cantada na fita por Bert e Mary Poppins, ganhou versão italiana de muito sucesso na voz da Rita Pavone. E foi essa versão que eu primeiro conheci.
A canção da chaminé — “Chim-Chim-Chree” — é alegre e de uma beleza arrebatadora. “Feed the birds” (Alimente os pássaros), na voz de Julie Andrews, é encantadora. Trata-se da sequência antológica em que Mary Poppins mostra às crianças, em seu globo, a singela imagem da velhinha (Jane Darwell, nonagenária, em sua última aparição nas telas) que joga milho às pombas na escadaria da catedral.
Afinal quem é Mary Poppins? Temos aí um arquétipo do cinema: a pessoa misteriosa, que vem do nada, cumpre uma missão sagrada e retorna para o nada de onde veio. Um arquétipo que aparece em obras tão diferentes como “Rita no Oeste” (com Rita Pavone) e “Hard candy” (com Ellen Page). A babá com poderes mágicos — um anjo, uma fada? — e que se diz uma “pessoa perfeita” — pode voar com seu guarda-chuva, sentar nas nuvens, subir numa escada de fumaça, tirar coisas volumosas de dentro de uma mochila que não podia contê-las e, o que é mais importante, dirigir os acontecimentos, a ponto de transformar uma família onde os pais (principalmente o pai) se haviam distanciado dos filhos.
As crianças Karen Dotrice e Matthew Garber já haviam aparecido um ano antes, na maravilhosa película “As três vidas de Thomasina”. Tornariam a aparecer juntas em “The gnome-mobile”, filme póstumo de Walt Disney. Garber, porém, veio a morrer prematuramente, de uma infecção alimentar contraída na Índia, e a encantadora Karen Dotrice ainda desenvolveu uma pequena carreira cinematográfica, aparecendo já adulta em depoimento nos extras do DVD de “Mary Poppins”. Quanto a Julie Andrews, que antes fazia teatro, é uma grande descoberta para o cinema feita pelo próprio Walt.

MARY POPPINS – EUA, 1964. Walt Disney Productions (atual Walt Disney Pictures). Produção: Walt Disney. Co-produção: Bill Walsh. Direção: Robert Stevenson. Roteiro: Bill Walsh e Don Da Gradi. Com base no livro de P. L. Travers. Direção musical de Irwin Kostal. Canções de Richard M. e Robert B. Sherman. Elenco: Julie Andrews (Mary Poppins), Dick Van Dyke (Bert), Karen Dotrice (Jane), Matthew Garber (Michael), David Tomlinson (George Banks), Glynis Johns (Winifred Banks), Hermione Baddeley (Ellen, a governanta), Reta Shaw (Brill, a cozinheira), Elsa Lanchester (a babá Katie), Reginald Owen (o almirante), Ed Wynn (o tio Albert), Arthur Treacher (o guarda Jones) e Jane Darwell (a velha dos pombos).
A admirável sequência de animação (tendo como figuras reais inseridas Mary Poppins, Bert, Jane e Michael) foi dirigida por Hamilton S. Luske, veterano profissional da Disney, que trabalhou em clássicos como “Pinocchio”, “Peter Pan” e “A dama e o vagabundo”.
Consta que Walt Disney pretendia filmar uma sequência de “Mary Poppins”, o que infelizmente não pôde ocorrer em virtude da morte do cineasta em 15 de dezembro de 1966.


Rio de Janeiro, 16 de julho a 5 de dezembro de 2013.


imagem do filme