A profunda melancolia de "Air"

A PROFUNDA MELANCOLIA DE “AIR”
Miguel Carqueija


Um dos seriados japoneses de animação mais tristes, não obstante belo e poético, “Air” (Ar) baseia-se num jogo de computador desenvolvido por “Key” a partir de 2000, contando apenas treze episódios e mais dois “OVAS” (especiais), todos de 2005, com direção de Tatsuya Ishihara e produção dos Estúdio Kyoto.
Tudo em “Air”, que se passa em dois planos temporais diferentes, é pungente e doloroso. Acompanhamos a jornada de Yukito Kumisaki, um marionetista que sai pelo Japão encarregado pela mãe de encontrar a jovem que “foi selada sozinha, e que sofre sozinha”. Trata-se de uma lenda que se reporta ao Japão de muitos séculos atrás, uma época misteriosa em que existiam pessoas aladas, perseguidas pelos governos. O céu é, em Air, uma referencia constante nas aquarelas do anime, que apresenta uma beleza exemplar. A série é toda perpassada por forte sopro de poesia e o céu azul parece ocultar em seu seio mistérios profundos e tristes.
A principal figura do anime é Misuzu Kamio, uma garota sensível, romântica e tristonha que mora com a tia (tornada sua mãe adotiva) numa cidade litorânea e precisou sair da escola por sofrer de uma doença desconhecida que lhe causa dores. Solitária, ela se liga de amizade com o forasteiro Yukito, que possui bom coração, embora Haruko, a tia de Misuzu, o encare com reservas. No decorrer da série Yukito tomará conhecimento e se envolverá com os problemas de outras garotas do local, nada comuns ou ordinários e que chegam a provocar lágrimas, como no pungente caso de Michiru, que, como Misuzu, também parece ter alguma relação com os misteriosos seres alados.
Mas os eventos do presente são um longínquo reflexo de terríveis acontecimentos do passado remoto. Acompanhamos a fatídica jornada de Kanna, “a ultima menina alada”, que foge do cativeiro auxiliada pelo samurai Ryuuya e pela fiel amiga Uraha. Kanna fôra confinada num palácio pelo poder imperial, enquanto sua mãe permanecia presa em outro local. A fuga de Kanna é emocionante e, na maior parte do tempo, ela esconde as asas na roupa.
Misuzu seria uma remota descendente dos seres alados, ainda que já sem asas perceptíveis, o que explicaria a sua inadaptabilidade a este mundo da superfície do globo, onde o ar parece lhe faltar. O fato é que os dois desfechos — da história do passado e da história do presente — acabam dando a impressão de algo incompleto, decepcionante — apesar de toda a beleza dos episódios e dos detalhes comoventes e minimalistas — como se houvesse a intenção de produzir uma segunda temporada, que afinal não foi feita. Resta a imensa compaixão despertada pelos seres alados, semelhantes a anjos, perante a intolerância dos humanos.
Note-se que o universo de Air inclui pelo menos uma novela, um mangá em dois volumes (publicado entre 2004 e 2006 pela Kadokawa Shoten — lembrando que os vários episódios que compõem um volume de mangá são antes lançados em separado em revistas que apresentam várias matérias) e um filme de longa-metragem, também de 2005, do estúdio Toei Animation, com direção de Osamu Desaki (é difícil conseguir informação sobre os produtores desses animes).
A melancolia de “Air” é de cortar o coração, com a comovente dor de Misuzu, presa a um triste destino e a uma fatídica herança do passado; e que aceita estoicamente a sua dor e o seu destino. E no fim, paira a esperança de uma felicidade no Além, de uma vida que o sofrimento purificou; e permanece em aberto também uma solução para a tragédia de Kanna, “a ultima menina alada”, cuja lealdade de seus únicos amigos na Terra, Ryuuya e Uraha, vai até o casamento de ambos, para gerar uma descendência que perpetue o anelo de libertar aquela que foi selada nos ares.

Rio de Janeiro, 1° de fevereiro a 23 de março de 2013.

O ESTIGMA DO FEITICEIRO NEGRO (CO-AUTORA MELANIE EVARINO) E FAREI MEU DESTINO são obras de Miguel Carqueija editadas respectivamente por Editora Ornitorrinco e Giz Editorial. Podem ser procuradas nas páginas das editoras ou pela Livraria Cultura e outros pontos localizáveis na internet.
"Farei meu destino" é a história romanceada e futurista da "deusa da Lua" da mitologia greco-romana; "O estigma do feiticeiro negro" é a história de uma elfa nobre em luta com as forças do mal.