Foto Google: Lincoln Memorial 

LINCOLN, O FILME & ANTINOMIA ÉTICA

Na semana passada, acompanhei pela TV Justiça os lances que pareciam finais do julgamento  da Ação Penal nº 470, conhecida como mensalão. Em meio aos debates permeados de sustentações jurídicas, técnicas e políticas, lembrei-me de rever Lincoln. Não que se trate de uma obra prima cinematográfica, embora seja marcada pelo excelente desempenho de Daniel Day-Lewis no papel principal.  Steven Spielberg não repete o brilho de direções anteriores. Mas explora com exaustão os bastidores do poder presidencial americano, em momentos decisivos de sua história. Esse me parece o grande mérito do filme.

Tudo se passa nos últimos meses de vida do presidente Abraham Lincoln. Um período marcado pelo fim da guerra civil e aprovação pela Câmara dos Representantes da Décima Terceira Emenda à Constituição que pôs fim à escravatura nos Estados Unidos. Momentos carregados de tensão que, ao sociólogo,  parecem ilustrar a antinomia funcional weberiana da ética da convicção e  da ética da responsabilidade, um dilema  crucial sempre presente na conduta humana.

Segundo Max Weber, a ética da convicção orienta a ação do homem segundo valores de sua própria consciência, sem maiores preocupações com as consequências do seu ato. A ética da  responsabilidade, ao contrário, é regida por valores que levam em conta o atingimento dos objetivos perseguidos. Ou seja, ator social deixa de lado princípios absolutos, fixando-se apenas na conduta mais eficaz para a obtenção desses resultados   Algo parecido com o que Maquiavel já preconizara com a máxima "os fins justificam os meios"

Esse dilema protagonizado por Lincoln e seus auxiliares mais próximos, é a questão central do filme. Abolicionista convicto, o presidente que pertencia ao Partido Republicano usou de todos os meios, legítimos e ilegítimos, para ver aprovada aquela emenda constitucional antes do fim da guerra. Àquela altura, havia 60 anos que a Constituição americana não era alterada e os riscos de uma rejeição eram enormes. Isso abalaria o prestígio e a popularidade do presidente, sem falar da derrota moral de não poder realizar o sonho que lhe era mais caro, a abolição da escravatura.  Lincoln tinha uma razão muito forte para essa pressa.

Dois anos antes, usando de poderes discricionários conferidos ao presidente em tempos de guerra, proclamou a emancipação dos escravos, sem submeter ao poder Legislativo.  Com o fim da guerra que já estava praticamente definida, ele receiava que a volta à normalidade constitucional ensejasse uma revisão do seu ato pela Câmara ou pela Corte de Justiça. Para não correr esse risco, deixou de lado os escrúpulos e montou um esquema para subornar deputados que se opunham à Emenda. Principalmente entre os democratas que eram os conservadores de então. O seu partido tinha maioria na Câmara, mas precisava de mais 20 votos da oposição para obter os dois terços exigidos por Lei.

Nesse vale tudo, Lincoln comandou pessoalmente a operação que envolveu auxiliares, lobistas, e parlamentares radicais mobilizados para convencer democratas a mudarem o seu voto. Verbas, empregos, cargos públicos e até concessão de licença para serviços de cobrança de pedágio foram "argumentos" utilizados.

O filme se fixa nos detalhes dessas investidas, mostrando como foram recompensados um a um os votos efetivamente mudados, ou as promessas de abstenção e ausências do plenário no dia da votação. Naquele dia, quando já se tinha certeza que a Emenda passaria, aconteceu o inesperado. Ao ser aberta a sessão um deputado oposicionista pediu o adiamento da votação, justificando que sabia da existência de uma delegação Confederada em Washington, negociando a rendição, e que o presidente Lincoln os enganara.

Ante o impasse, a liderança republicana se apressou em rebater a afirmação e, incontinenti,  mandou dois membros da bancada procurar Lincoln e obter uma declaração do próprio punho negando o fato. Na verdade as tratativas de rendição já tinham começado e Lincoln, para espanto do seu secretário, assinou a negação que poderia lhe custar o impeachment por faltar com a verdade. Com a chegada da mensagem lida na Câmara pelo líder republicano, a situação voltou ao controle dos abolicionistas. A sessão foi reiniciada e a votação concluída com a vitória apertada da Emenda por apenas dois votos de diferença.

Enquanto a maioria dos parlamentares comemora, Thaddeus Stevens, um republicano abolicionista radical, pede ao secretário da Câmara o texto original da Emenda e leva como troféu a ser oferecido à sua empregada negra que parece ser, também,  sua amante. Ao chegar em casa, entrega-lhe o documento, não sem antes sentenciar: "A maior medida do Sec. XIX aprovada pela corrupção, ajudada e instigada pelo homem mais puro da América".

Ao propor ao Congresso a Emenda Décima Terceira Lincoln agiu de acordo com sua convicção, como abolicionista que era. Mas ao transgredir normas para forçar a sua aprovação, parece ter prevalecido a ética da responsabilidade, determinada pelas circunstâncias que, de outra forma, impediriam a vitória de uma causa social mais do que justa.

Ninguém de sã consciência duvida dos valores morais de Lincoln, tanto que ele  não é lembrado por supostos erros circunstanciais. A história o absolveu disso. Nem sempre os valores absolutos são os mais eficazes em determinadas decisões políticas.  A questão parece paradoxal, mas deixo com Weber as palavras finais deste texto que certamente elucidam o dilema de Lincoln no distante Sec. XIX, tanto quanto situações politicas controversas do mundo atual.

"A nenhuma ética é dado ignorar o seguinte ponto: para alcançar fins "bons", vemo-nos, com frequência, compelidos a recorrer, de uma parte,  a meios desonestos ou, pelo menos, perigosos, e compelidos de outra parte, a contar com a possibilidade e mesmo a eventualidade de consequências desagradáveis. E nenhuma ética pode dizer-nos a que momento e em que medida um fim moralmente bom justifica os meios e as consequências moralmente perigosas. (Weber. Ciência e política, duas vocações, Edub/Cultrix. 1983, p.114).